Infanticídio indígena: traços de uma cultura em transformação

Por trás do Projeto de Lei 1057/2007 “existe uma questão fundamentalista religiosa e uma questão política”, adverte o secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Saulo Feitosa.

“Se as pessoas querem defender a vida das crianças indígenas, devem aderir a outros projetos de lei”, como o Estatuto dos Povos Indígenas, diz Saulo Feitosa à IHU On-Line, ao criticar o Projeto de Lei 1057/2007, que criminaliza os povos que praticam infanticídio.

Em entrevista concedida por telefone, ele explica que todos os indígenas que vivem no Brasil estão submetidos à legislação brasileira e que, portanto, não há necessidade de sancionar o Projeto de Lei 1057/2007, de autoria do deputado Henrique Afonso (PT-AC). Na avaliação do secretário do Cimi, o Projeto tem uma carga preconceituosa, racista, e serve “para ampliar o grau de preconceito da sociedade contra os povos indígenas, e para justificar interesses colonialistas que se mantêm nos dias de hoje”.

De acordo com Feitosa, o infanticídio era praticado no período colonial e desde o início da década de 1990 não se tem informações de casos de infanticídio em tribos indígenas. “Todos os registros históricos, dos quais tenho conhecimento, acenam que, entre os indígenas, o índice de infanticídio é baixíssimo. Inclusive viajantes como Fernão Cardim, que escreveu um livro sobre os hábitos do Brasil, faziam referência à maneira carinhosa como as mulheres indígenas cuidavam de seus filhos em comparação às mulheres de Lisboa. (…) Causa-nos estranheza que, 500 anos depois, apareçam grupos fundamentalistas acusando indígenas de matanças generalizadas de suas crianças.”

Feitosa explica ainda que o infanticídio era regido por uma cosmologia indígena e que fazia parte da cultura de alguns povos. “O fato de existir uma narrativa cosmológica não significa que a cultura se mantém atualizada”, enfatiza. E dispara: “a questão do infanticídio, na prática, é residual porque os povos mudam suas culturas”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como avalia a polêmica acerca da prática do infanticídio e o projeto de lei que criminaliza indígenas e profissionais de órgãos governamentais por tais práticas? ONGs e deputados evangélicos acusam o governo de cruzar os braços diante da morte de crianças e defendem que o Estado é obrigado por lei a protegê-las.

Saulo Feitosa – Por trás desse projeto de lei e desse debate existe uma questão fundamentalista religiosa e uma questão política. Os povos indígenas estão submetidos à mesma legislação brasileira. Portanto, se vierem a cometer qualquer crime, serão julgados e punidos como todos os cidadãos deste país. Hoje, aproximadamente 750 indígenas estão cumprindo pena no sistema penitenciário nacional. Desse modo, não há razão para existir uma lei específica para falar de infanticídio indígena. No entendimento do Cimi, na medida em que se cria uma lei, os índios seriam julgados e condenados duas vezes por um mesmo crime.

Todos sabemos que os indígenas defendem a vida, a natureza. Portanto, existe uma campanha nacional e internacional negativa contra os povos indígenas e isso gera um descrédito da população em relação a essas comunidades. É nesse contexto ofensivo contra os direitos indígenas que surge a questão do infanticídio indígena. Os propositores do Projeto de Lei 1057/2007 afirmam que há, entre os povos indígenas do Brasil, a prática do sacrifício de crianças e que esta prática não é combatida pelo Estado e pelos órgãos que atuam junto dos povos indígenas. Sendo assim, eles querem obrigar as pessoas que trabalham com a questão indígena a denunciarem os índios caso suspeitem da possibilidade de alguma mulher, em processo de gestação, abandonar o filho. Se os profissionais não denunciarem os indígenas, serão julgados pelo crime de omissão. Essa medida mostra novamente a carga preconceituosa e racista do projeto.

IHU On-Line – Qual é a origem e o sentido do infanticídio para as comunidades indígenas? Ele ainda é praticado no Brasil? Quais são as etnias indígenas que praticam o infanticídio?

Saulo Feitosa – Segundo os parlamentares que querem aprovar o Projeto de Lei, o infanticídio seria uma prática regular dos povos indígenas. Temos conhecimento de experiências isoladas, da mesma forma que identificamos casos de abandono infantil na sociedade brasileira. Semanalmente, assisto, no noticiário, informações de crianças abandonadas em grandes cidades: recém-nascidos jogados em lixeiras, abandonados nas ruas, etc. Essa questão do abandono e, mesmo do assassinato de crianças, é uma questão que aflige toda a humanidade.

Todos os registros históricos dos quais tenho conhecimento indicam que, entre os indígenas, o índice de infanticídio é baixíssimo. Inclusive viajantes como Fernão Cardim, que escreveu um livro sobre os hábitos do Brasil, faziam referência à maneira carinhosa como as mulheres indígenas cuidavam de seus filhos em comparação às mulheres de Lisboa. Muitos historiadores afirmam que a prática de infanticídio era comum no período colonial, especialmente em comunidades que viviam no Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Há relatos históricos de uma quantidade enorme de recém-nascidos que eram abandonados nas calçadas, nas ruas, mortos e comidos por porcos e cachorros. Os historiadores que relatam esses fatos sempre os comparam com a questão indígena, e afirmam que, entre os índios, essa prática era muito diminuta.

Causa-nos estranheza que, 500 anos depois, apareçam grupos fundamentalistas acusando indígenas de matanças generalizadas de suas crianças. Nós, do Cimi, temos conhecimento de casos isolados. Alguns missionários já presenciaram atos de abandono de crianças nas florestas. Entretanto, não temos relatos recentes de missionários sobre esses casos. Por isso, não podemos afirmar que há prática de infanticídio nas comunidades indígenas e, tampouco, que acontecem em grandes proporções.

Infanticídio

Vi, em matéria recente de um jornal de grande circulação, que, de um total de 250 povos, cerca de 20 praticam o infanticídio. Não sei como eles chegaram a esse número, considerando que os últimos registros do Cimi datam de 1990. Sabemos que oito povos ainda praticam o infanticídio, os quais têm pouquíssimo contato com a sociedade nacional.

Antigamente, alguns povos abandonavam recém-nascidos por não ter informações sobre o que significa, por exemplo, uma criança nascer com retardamento psicomotor. Não tendo condições de sobreviver na floresta, essas crianças eram abandonadas. Há outros relatos de crianças que nascem sem um “pai social”. Para os indígenas, uma criança que nasce sem um pai para poder caçar e garantir a sua sobrevivência não tem condições de sobreviver. Nesses casos, os recém-nascidos eram abandonados por questões práticas, pois, na percepção da comunidade, não teriam condições de sobreviver na selva. Outros relatos referem-se às narrativas cosmológicas do nascimento de gêmeos. Pesquisadores registraram, por meio da história oral, que não se aceitava, em determinadas culturas, o nascimento de gêmeos. Então, em função da cosmologia e dos mitos de origem do povo, se acreditava que os gêmeos deveriam ser sacrificados.

Campanha contra o infanticídio

Hoje, essas campanhas contra o chamado infanticídio indígena se fundamentam nesta narrativa cosmológica, o que, para nós, é um absurdo. O fato de existir uma narrativa cosmológica não significa que a cultura se mantém atualizada. A prática dos processos de cultura é dinâmica. Então, deve haver, em povos que têm pouco contato com outras culturas, essa referência cosmológica, que justificaria o abandono de uma criança gêmea, por exemplo. Mas, em muitos povos onde essa narrativa estava presente, a prática deixou de existir. É muito fácil compreender isso: muitas práticas do Antigo Testamento são condenáveis na sociedade de hoje. Apesar de elas permanecerem na Bíblia, não são praticadas pelos cristãos do Século 21. Então, não podemos olhar para o nosso universo religioso e olhar para os demais povos de outra forma. Embora subsistam, nas narrativas cosmológicas, informações a respeito da gravidez de gêmeos, na prática, as ações têm se alterado. Por isso, costumamos dizer que a questão do infanticídio, na prática, é residual porque os povos mudam suas culturas. O pluralismo histórico acontece em todas as culturas, as quais adquirem, com o tempo, novas formas.

Quando o Cimi foi fundado, os povos indígenas não tinham acesso à saúde e, portanto, os missionários eram treinados para suprir essa carência. Hoje, existe a assistência à saúde, o médico, por mais precária que seja. Isto também contribui para alterar a cultura dos povos.

No Mato Grosso tem um povo formado por aproximadamente cem pessoas. Eles foram combatidos em 1978. Na época, sobreviveram 27 pessoas. Desde então acompanhamos essa comunidade. Daquele número de 27 pessoas, eram poucas as mulheres em idade fértil. Logo após a inserção da nossa equipe na comunidade, nasceu uma criança doente. Para os indígenas, o recém-nascido era vítima de feitiço e, portanto, deveria ser sacrificado. Os missionários que estavam no local explicaram que, na nossa sociedade, havia uma espécie de pajé que conseguia realizar um tratamento e sanar aquela deficiência. A comunidade aceitou e a criança foi levada a um hospital em Goiânia, onde foi submetida a uma cirurgia de reparação. O bebê retornou um tempo depois e foi aceito pela comunidade. Para resolver essa questão, não foi preciso uma lei, mas, sim, diálogo. É lógico que depois daquele acontecimento, a cultura da comunidade sofreu mudanças. Então, nada justifica que agora se insista na aprovação de uma lei para criminalizar um povo. Projetos como esse servem para ampliar o grau de preconceito da sociedade contra os povos indígenas e para justificar interesses colonialistas que se mantêm nos dias de hoje.

Esses povos têm muitos valores e nós precisamos aprender com eles. Então, não aceitamos, em hipótese alguma, essa leviandade que está sendo veiculada na mídia, inclusive com a produção de um pseudodocumentário mentiroso que fala do enterramento de crianças junto dos povos Suruwahá. Não se trata de um documentário e, sim, de uma ficção gerada pela mente colonizadora.

O povo Suruwahá pratica o suicídio coletivo. Eles são conhecidos como o povo do veneno. A população deles é diminuta, algo em torno de cem pessoas. Com a morte dos adultos, muitas crianças ficam órfãs. Então, o problema dos Suruwahá não é o infanticídio e, sim, o suicídio. Os membros de organizações que criticam o infanticídio dizem que os índios praticam o suicídio porque são obrigados a matar seus filhos e, para não matá-los, se suicidam. Isto é uma mentira, uma distorção de informações. Esse povo sofreu, há séculos, um grande ataque e os sobreviventes nunca mais conseguiram formar novos pajés. Então, eles adotaram a prática do suicídio ainda jovens para se encontrarem com os pajés em outra esfera. Este ano estive na Amazônia e a equipe que trabalha lá disse que houve redução de casos de suicídios entre os índios dessa etnia.

IHU On-Line – Então a discriminação contra os indígenas tem um viés religioso? Que religiões manifestam essa posição e por quê?

Saulo Feitosa – Quem coordena e estimula essa campanha é a ONG Atini – Voz pela Vida, e outros grupos religiosos fundamentalistas. O povo brasileiro tomou conhecimento do infanticídio a partir do ano de 2006, quando foi produzido um documentário chamado Hakani. A história de uma sobrevivente, que mostra o enterro de crianças vivas. Os atores indígenas que desempenharam esses papéis receberam R$ 30. Depois da veiculação do vídeo, o Ministério Público entrou com uma ação contra os produtores do documentário, porque as crianças que apareceram no filme pertenciam ao povo Karitiana, de Rondônia. O documentário foi exibido em um programa de televisão e as pessoas da comunidade assistiram. Pela cultura daquele povo, quem simula o enterramento perde a sua alma. Portanto, as imagens criaram um problema cultural grave para as crianças. Inclusive, no depoimento para o Ministério Público, os pais das crianças indígenas disseram que receberam R$ 30 para as crianças serem fotografadas. Eles não sabiam que elas participariam de um documentário.

IHU On-Line – Quais são as razões da intolerância indígena hoje?

Saulo Feitosa – Uma das razões é a distribuição da terra. A grande função do projeto de Lei é criar, dentro do Congresso Nacional, um clima anti-indígena porque existem diversos projetos de leis a favor dos povos indígenas tramitando no Congresso. Há uma campanha internacional para demonstrar que os povos indígenas são selvagens. Essa imagem certamente vai repercutir em outros projetos de leis referentes à demarcação de terras indígenas, exploração de minérios em terras indígenas, etc., reforçando a imagem negativa que se tem desses povos.

Se as pessoas querem defender a vida das crianças indígenas, devem aderir a outros projetos de lei. Existe no Congresso uma proposta, que foi amplamente discutida com todos os povos indígenas do Brasil, sobre a criação do Estatuto dos Povos Indígenas, porque a legislação que está em vigor é de 1973, ou seja, é anterior à Constituição Federal e, portanto, não está adequada para a atual situação dessas comunidades. O novo texto tem, inclusive, um artigo especial de proteção à criança e ao adolescente indígena, o qual enfatiza que, caso uma criança seja rejeitada pelos pais, poderá ser adotada por pessoas do próprio povo ou povos próximos.

IHU On-Line – Nesta semana, o povo Kaingang bloqueou sete estradas federais no Rio Grande do Sul, reivindicando melhores condições na área da saúde. Eles argumentam que, embora tenham acesso ao SUS, as condições de atendimento são precárias. Como avalia essa questão? O acesso à saúde entre as comunidades indígenas é mais precário do que para a população em geral?

Saulo Feitosa – No final dos anos 1980, o Brasil instalou um sistema correlato de atenção à saúde indígena. Portanto, os índios têm um sistema próprio de saúde que se fundamenta nos distritos especiais indígenas. Esses distritos foram projetados com a perspectiva de serem autônomos do ponto de vista da gestão, assim, eles teriam quadros de funcionários para atender as comunidades. Esse projeto de assistência à saúde foi bem desenhado, mas, na prática, ocorreram privatizações e um esvaziamento da proposta original de se criar distritos para atender as comunidades. Os serviços foram terceirizados e essa terceirização foi agravada pelo alto índice de corrupção dentro da Fundação Nacional da Saúde (Funasa): auditorias demonstram os desvios de verbas da saúde pública. Além disso, cargos foram loteados para políticos e os distritos não foram administrados por pessoas competentes. Nesse sentido, a saúde indígena é tão precária quanto a dos demais brasileiros. O governo deveria abrir concurso público para atender à saúde indígena. Enquanto isso não acontecer, continuaremos assistindo essa precariedade e a morte de crianças.

IHU On-Line – Como vê a política indigenista hoje? Quais os avanços e os limites?

Saulo Feitosa – O governo e a Fundação Nacional do Índio (Funai) têm um discurso progressista de reconhecimento dos direitos indígenas, de valorização da cultura, mas uma prática colonialista. O governo Lula criou a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), a qual pensávamos ser um processo importante, mas percebemos que o governo inicialmente apenas sinalizou para uma discussão. Quando os índios passaram a exercer a sua autonomia, o governo começou a tomar atitudes autoritárias ao ponto de fazer uma reestruturação da Funai sem discutir com os povos indígenas. Esse era um processo para ser feito como uma construção coletiva, e não reproduzindo modelos autoritários do período militar.

Ainda este ano, o presidente da Funai, junto com o ministro da Justiça e o delegado geral da União, publicaram uma portaria para redefinir as bases para a demarcação de terras indígenas incluindo a participação dos municípios, que historicamente sempre foram contra à demarcação de terras por causa de interesses econômicos e políticos locais. Essa situação se agravou e, na última reunião da CNPI, em junho, os representantes indígenas dessa comissão, em protesto, disseram que não votariam e se retirariam da reunião. Eles só voltariam a se reunir se a presidenta Dilma estivesse presente porque, desde que foi eleita, ela não conversou com as representações indígenas do país.

As obras do PAC afetam as terras indígenas e os povos não são consultados, embora o país seja membro da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e embora a Constituição obrigue o Estado a fazer consultas em relação a temas polêmicos como Belo Monte, a transposição do Rio São Francisco, as hidrelétricas do Rio Madeira, etc. Diria que os documentos do governo não reproduzem mais o ranço da ditadura militar, mas, na prática, agem da mesma maneira.

* Publicado originalmente no site IHU On-Line.