No Brasil, desde 1989, é crime discriminar alguém por sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, mas as discriminações por motivo de orientação sexual ainda não são passíveis de punição. Para sanar essa lacuna, tramita na Câmara o Projeto de Lei 122/2006, que tem encontrado forte resistência de quem defende um direito de discriminar em nome de Deus.
O Congresso Nacional brasileiro não costuma convidar traficantes de drogas para audiências públicas destinadas a debater se o tráfico de drogas deve ou não ser crime. Também não convida homicidas, ladrões ou estupradores para dialogar sobre a necessidade da existência de leis que punam seus crimes. Já os homofóbicos têm cadeiras cativas em todo e qualquer debate no Congresso que vise a criar uma lei para punir suas discriminações. Estão sempre lá, por toda parte, e é justamente por isso que a lei ainda não foi aprovada.
A proposta da nova lei é demasiadamente simples: acrescentar a discriminação aos homossexuais no rol das que já são punidas pela lei penal brasileira. Nossa atual Lei 7.716/89 já pune as discriminações por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional e passaria a punir também as discriminações por orientação sexual. Hoje é crime impedir um negro de frequentar uma loja, restaurante ou hotel, mas não há penas previstas para o caso de a vítima da discriminação ser homossexual. Pelo projeto, a mesma proteção contra a discriminação que se dá hoje ao negro seria estendida aos homossexuais. Nada muito revolucionário. Uma mudança mínima na lei, mas muito relevante para quem é homossexual e sofre o preconceito na pele diariamente.
O Artigo 20 da lei atual prevê ainda punição para quem “pratica, induz ou incita a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” e, pelo projeto, as mesmas penas seriam aplicadas a quem praticasse o crime contra os homossexuais. Os fundamentalistas religiosos, porém, não gostaram nada da ideia e defendem, com unhas e dentes, seu suposto direito de discriminar homossexuais.
Dificilmente um congressista subiria em uma tribuna para defender que um pastor ou um padre tem direito de discriminar um negro, porque este seria um pecador. O racismo brasileiro é tímido demais para tolerar uma excrescência dessas. Já a homofobia é escancarada e o que se vê todos os dias são congressistas lutando pelo direito de discriminar homossexuais, sem maiores pudores.
Para tentar contornar o busílis, a senadora Marta Suplicy (PT-SP) propôs uma subemenda ao projeto, acrescentando uma exceção de que a lei não se aplicaria “à manifestação pacífica de pensamento decorrente de atos de fé, fundada na liberdade de consciência e de crença de que trata o inciso VI do art. 5º da Constituição Federal”. Ou seja: a nova lei toleraria que pastores, padres e outros clérigos, durante seus cultos religiosos, afirmassem que os homossexuais, os negros e outras minorias são pecadores e já possuem câmaras de tortura reservadas para eles no inferno.
Ainda que o recuo tático da senadora possa ser interpretado por muitos como um retrocesso, na atual composição do Congresso Nacional, marcada por expressiva presença de fundamentalistas religiosos, ele se faz necessário para neutralizar o principal argumento dos homofóbicos: o suposto cerceamento da liberdade de manifestação de fé e pensamento.
Discriminar em nome de Deus
Não existem direitos absolutos e, quando nos deparamos com um conflito de direitos, é preciso ponderar para que se permita o máximo exercício de ambos os direitos com o mínimo cerceamento de cada um deles. No conflito entre o direito à livre manifestação de fé e de pensamento e o direito à igualdade e à honra, a questão é definir se a lei deve punir apenas as ações discriminatórias (como impedir um negro ou um homossexual de frequentar um restaurante) ou também as manifestações de pensamento preconceituosas (como afirmar publicamente que um negro ou um homossexual está fadado a passar a eternidade queimando no inferno).
A solução dada a esse conflito de direitos varia nas democracias contemporâneas. Nos Estados Unidos, o direito à liberdade de manifestação de pensamento tende a preponderar, em função da enorme relevância que a cultura jurídica norte-americana atribui à primeira emenda da sua Constituição. Por conta disso, admite-se a manifestação de pensamentos preconceituosos, punindo-se exclusivamente as ações discriminatórias. Já na Europa, em função da dramática experiência histórica do nazismo, mesmo as manifestações de pensamento preconceituosas costumam ser criminalizadas.
No Brasil, em função da forte presença religiosa que tem dominado o Congresso Nacional, o mais provável é que o “direito de discriminar em nome de Deus” acabe mesmo sendo incorporado à lei. Com isso, nosso sistema se aproximaria da tradição norte-americana, permitindo a livre manifestação de ideias preconceituosas, mas punindo as ações concretas de discriminação. Um avanço, sem dúvidas, em relação à ausência de punição às discriminações homofóbicas que temos hoje, mas que está longe de pôr um ponto final no tratamento jurídico dado à questão.
Homofobia mata
O debate sobre a discriminação em razão da orientação sexual vai muito além da defesa do respeito à honra e à dignidade dos homossexuais. É um debate sobre o direito à liberdade dos homossexuais de expressarem seu afeto em locais públicos sem serem importunados, ameaçados, agredidos ou mesmo mortos.
Os crimes violentos contra homossexuais têm aumentado bastante no Brasil nos últimos anos. Segundo o Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais de 2010, divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), no ano passado foram documentados 260 homicídios de gays, lésbicas e travestis, o que demonstra um crescimento significativo em relação aos 198 homicídios registrados em 2009.
A aprovação de uma lei punindo as discriminações contra os homossexuais, por certo, não terá o condão de eliminar esses crimes, até porque já existem penas para os crimes de ameaça, lesões corporais e homicídios. A criminalização desse tipo de discriminação, porém, terá um importante efeito simbólico de estabelecer que a sociedade brasileira não tolera mais a discriminação homofóbica e valora esta conduta como uma grave violação das regras de boa convivência inerentes a uma sociedade democrática.
No passado, o homossexual já foi tratado como criminoso e foi punido pelo crime de sodomia. Posteriormente, foi tratado como vítima de uma doença chamada homossexualismo e, não raras vezes, submetido aos mais variados e desumanos tratamentos compulsórios. Hoje, a Medicina reconhece a homossexualidade como uma dentre as diversas orientações sexuais possíveis e o Direito brasileiro reconhece a união estável de casais homossexuais como plenamente legal.
A cultura preconceituosa criada e mantida ao longo de décadas, porém, não foi erradicada pelos novos posicionamentos da Medicina e do Direito. É preciso novas leis que estimulem e promovam a igualdade de tratamento que, ao longo de tanto tempo, foi reiteradamente rejeitada.
O Direito Penal tem, neste momento histórico, um importante papel como instrumento de promoção de direitos. A Lei 7.716/89 tem sido, desde sua entrada em vigor, uma poderosa ferramenta no combate à discriminação racial. Que sirva também para combater a homofobia.
Assim como hoje é considerado criminoso quem discrimina o negro, amanhã também deve ser quem discrimina o homossexual. E ainda que, por ora, todos continuem sendo livres para expressar seus pensamentos preconceituosos em nome de seu Deus, chegará um dia em que a maioria terá vergonha de fazê-lo em voz alta. E, nesse dia, talvez não sejam mais necessárias leis penais para coibi-los – o asco social lhes bastará.
* Publicado originalmente no site da Revista Fórum.