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Guerra étnica mais intensa e mortal

O gado é o bem disputado pelas comunidades. Foto: Charlton Doki/IPS

Juba, Sudão do Sul, 24/8/2011 – Milhares de mulheres e crianças foram sequestradas e mais de mil pessoas morreram este ano nas sangrentas guerras que travam comunidades do Sudão do Sul por seu bem mais apreciado: o gado. Neste novo país independente da África, que produz cerca de 395 mil barris (de 159 litros) por dia de petróleo, os combates entre as etnias recrudesceu.

Para os sudaneses do sul, possuir muito gado é sinal de riqueza. Nos últimos tempos, os roubos de animais ficaram mais frequentes e mortais. Crescem os apelos para que o governo do Sudão do Sul cuide das raízes do problema. Muitos temem que, se esses problemas não forem resolvidos, a violência continue afetando a estabilidade e o desenvolvimento do novo Estado.

O conflito é alimentado pela fácil aquisição de armas por parte da população, e pelas normas culturais que valorizam a propriedade de gado como sinal de sucesso. Ao terminar a guerra civil sudanesa de 21 anos, em 2005, o valor do gado cresceu rapidamente, pois muitos homens decidiram se casar para iniciar uma nova vida, sendo comum pagar com animais o dote da noiva.

James Amuor, um jovem do Estado de Jonglei, disse à IPS que um dote pode custar até cem cabeças de gado. “Alguns jovens estão envolvidos em roubos porque querem se casar e não têm animais suficientes. Precisam roubar para poderem apresentar um dote”, acrescentou Amuor. Na comunidade de Dinka, quanto mais alta é a jovem maior é o valor do dote. O mesmo se aplica ao nível de educação da noiva.

No último ataque, ocorrido no dia 18 deste mês no condado de Uror, no Estado de Jonglei, 640 pessoas foram assassinadas e 761 ficaram feridas, 285 crianças foram sequestradas, 38 mil cabeças de gado foram roubadas e 8.924 casas incendiadas. Todo o condado foi vítima da ofensiva. O comissário de Uror, Tut Puok Nyang, disse que os atacantes seriam cerca de 2.500 jovens, possivelmente do vizinho condado de Pibor. Outros estimam que os responsáveis seriam entre três mil e cinco mil, “armados como um exército regular”.

Um trabalhador da Organização das Nações Unidas (ONU) que pediu para não ser identificado disse que os atacantes portavam vários tipos de armas, incluindo metralhadoras, rifles de assalto Kalashnikov, escudos antiaéreos e granadas. O ataque foi em represália a outro cometido em junho pela comunidade de Lou Nuer, no condado de Uror, contra a comunidade de Murle, em Pibor. Nessa ofensiva mais de 400 pessoas morreram, dezenas de mulheres e crianças foram capturadas e centenas de cabeças de gado foram roubadas.

As mulheres raptadas são tomadas como “esposas” e as crianças se convertem em seus “filhos”, sendo obrigados a aceitar a nova cultura de seus sequestradores. Nos mesmos incidentes, a Missão da ONU no Sudão, com mandato de proteger os civis, e o Exército de Libertação do Povo do Sudão (SPLA), agora força armada regular do país, não intervieram argumentando falta de capacidade. Há crescentes apelos ao governo para que envie forças de segurança para impedir uma repetição da violência.

Porém, o ministro de Aplicação da Lei do Estado de Jonglei, Gabriel Duop Lam, disse que é difícil impedir os ataques “porque os civis com armas superam os agentes da ordem”. No entanto, o ministro de Assuntos Internos do Sudão do Sul, Gier Chuang Aluong, disse que a pobre infraestrutura do país dificulta a vigilância. “A polícia e o SPLA não têm a capacidade para resolver rapidamente esses incidentes de violência entre comunidades. Devido à falta de estradas, um exército pode demorar 72 horas para chegar a um lugar onde há insegurança. Quando chegasse seria tarde demais para deter os atacantes”, disse Aluong.

O ministro acusou os “inimigos” do Sudão do Sul de entregarem armamento a civis para desestabilizar o país. Durante a guerra contra o norte, muitas pessoas adquiriram armas. Informes indicam que ladrões de gado teriam obtido novos armamentos, e o governo do Sudão do Sul acredita que foram fornecidos por Cartum. O governo diz ter evidência de que Cartum forneceu armas a milícias para desestabilizar o Sudão do Sul antes e depois do referendo sobre sua independência.

O novo país do sul ficou com 85% das reservas de petróleo do território que antes formava um único Sudão. “Nossa gente não fabrica armas. Isto significa que alguém deliberadamente as entrega, estimulando os sudaneses do sul a se matarem”, afirmou Aluong. No entanto, muitos atribuem a insegurança ao fracasso do governo do sul para desarmar os civis. Nyang disse acreditar que um completo desarmamento civil é a única solução para acabar com os ataques no Estado de Jonglei, em particular, e no Sudão do Sul, em geral.

Ahmed Thurbil perdeu seus familiares no ataque de 18 deste mês e criticou o governo por não ter desarmado os civis depois de encerrada a guerra civil. “Todo o governo sabia que muitos civis estavam armados, mas não cuidou de desarmá-los nesses seis anos. O que esperam que façam os jovens ociosos? É óbvio que estarão tentados a ir roubar gado”, respondeu. Thurbil disse que a violência entre comunidades foi minimizada tanto pelo governo de Jonglei como pelo governo central do Sudão do Sul.

Moses Opio, da Campanha por um Mundo Melhor, da ONU, disse à IPS que se os civis não forem desarmados os combates continuarão e seguirão matando inocentes. “Deve haver um desarmamento sistemático. Qualquer um que não esteja autorizado a portar uma arma deve ser desarmado”, afirmou. Teoricamente, a população do Sudão do Sul necessita de licença para ter uma arma. Entretanto, é fácil comprar uma sem os documentos necessários. Envolverde/IPS