Por Ricardo Young, presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade – IDS –
Se as mudanças climáticas são o tubarão que assusta a humanidade, a crise hídrica são seus dentes!
A sociedade civil vê a água como direito, os povos originários como sagrada, as empresas como mercadoria, o agro como insumo, os governos como obrigação e risco político, a academia como uma possível ciência… e a água, candidamente é, antes de mais nada, inefável. É a essência da vida! É sobretudo a base de um ecossistema pleno, saudável e de uma sociedade sustentável. Por conseguinte, o tema da água só pode ser tratado de forma holística, colaborativa, integrada e planetária.
A Água está para o debate multilateral hoje, como estava o carbono na década de 2000. Podemos considerar o protocolo de Kioto como a primeira iniciativa internacional. Mas, foi em Copenhague, em 2009, que o compromisso de engajamento sério dos países para a redução do carbono foi tentado e, finalmente, em 2015, o mundo amadureceu em torno dos NDC e dos ODS.
A diferença é que os gases de efeito estufa são causadores do aquecimento global e a crise hídrica é uma das suas principais consequências. Por mais que se fale em mitigação e adaptação, a mudança dos regimes de chuva, a acidificação dos oceanos, a elevação do nível dos mares, a contaminação dos rios e lagos com pesticidas, a poluição dos corpos d’água com microplásticos e muitos outros fenômenos a que acometemos os recursos hídricos não serão resolvidos nem no tempo, nem através dos mesmos mecanismos utilizados pelo carbono.
Mais do que o carbono, passível de regulação em suas emissões nacionais, a água desafia os conceitos estruturais de soberania. Daí o paradoxo, como essência a vida é um bem comum cuja dinâmica não obedece a fronteiras nem métricas convencionais. Necessitamos reconhecer a urgência de nos dobrarmos ao imperativo de uma economia regenerativa, alicerçada em Soluções Baseadas na Natureza, única capaz de restaurar o equilíbrio ecossistêmico para que a água, na sua escassez ou abundância, não se torne mais um terror a assolar a humanidade. Imaginem, a essência da vida tornando-se a sua principal ameaça.
Como uma das mais letais consequências da Crise Climática, temos que assumir este como um desafio para diversas gerações a nos convocar, desde já, a acelerar processos regenerativos, ao mesmo tempo em que trabalhamos na mitigação das causas do aquecimento global.
O melhor da ciência, do conhecimento ancestral e da biomimética serão necessários para impulsionar a regeneração.
Temos que, humildemente, reconhecer que apesar das assombrosas conquistas da engenharia pesada, não será ela isoladamente que dará as respostas; até porque estamos falando em um direito sagrado à vida, em regeneração de ecossistemas, em reflorestamento em grande escala, em resgate da diversidade biológica, campos estes em que, comprovadamente, as soluções cinzas não têm contribuído, a não ser marginalmente.
Podemos concordar ou não, mas a verdade é que antes de nos extinguirmos como espécie, temos a oportunidade de renascermos como civilização, de nos reconectar com a vida e nossas origens, resgatar a sabedoria ancestral que tanto renegamos, rever nossos valores e o sentido existencial de nossa humanidade. Não podemos jamais desmerecer nossa evolução, mas necessitamos da humildade de entendermos que, ao eleger a natureza como algo a ser conquistado, perdemos a oportunidade de aprender com ela. Ao saquearmos a terra, a vida, as florestas para forçarmos escalas de produção, perdemos a oportunidade de compreender a generosidade, a abundância deste planeta.
É claro que a tecnologia de ponta será necessária. É claro que a nanotecnologia, a microbiologia, a hidrologia, a agronomia, a genética e nossos conhecimentos de ponta serão necessários. No entanto, o que faz a expertise não é a excelência da ferramenta, mas é a qualidade do artesão. Sem uma total mudança de mentalidade, uma reconciliação profunda com a natureza livre e selvagem, a compreensão de que ela engendrou soluções altamente sofisticadas para milhares de desafios, entender como ela se auto-organiza, responde sistemicamente em uma espiral evolutiva, não daremos as respostas necessárias.
Se nossa tecnologia apenas baseada na física e nas ciências representassem evolução, não nos encontraríamos onde estamos: de que vale termos superado doenças, distâncias, as barreiras temporais, a gravidade e outros feitos assombrosos se não conseguimos garantir os pilares e princípios que permitem a vida no planeta? Cuidamos da fachada e do jardim, enquanto as estruturas de nossa casa estão ruindo. O milagre da vida está comprometido, e diante deste, nenhum feito é de fato relevante no longo prazo.
É da vida que temos que cuidar, é da comunidade de vida que temos que zelar; guardiões da vida, essa é a melhor potencialidade da espécie humana. (IDS)
Ricardo Young é empresário e professor, e atualmente o presidente do Conselho do Instituto Ethos. Young é fundador da Casa Amarela, espaço de arte, cultura, sociedade e meio ambiente que reúne o Museu Xingu, Ponto Solidário e diversas atividades de discussão, reflexão e difusão de temas relacionados à economia criativa e sustentabilidade. É presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade – IDS