Os frequentes “apagões” de eletricidade em São Paulo e no Rio de Janeiro trouxeram mais uma vez à tona uma velha discussão que parecia superada, mas ganhou agora nova vida: são eles uma consequência da privatização das empresas estatais? O sistema elétrico funcionava melhor quando as empresas pertenciam ao Estado? A resposta a estas indagações não é simples.
A estatização do setor elétrico brasileiro começou com a criação da Eletrobrás, há mais de 50 anos, quando ficou evidente que a Light se desinteressara tanto da expansão quanto da manutenção do sistema existente. Tal desinteresse se deveu à baixa remuneração dos seus investimentos, uma vez que o governo mantinha baixo o preço da eletricidade para os usuários.
Essa estatização – e o uso de recursos públicos e empréstimos do Banco Mundial – permitiu a expansão do sistema e a criação de empresas estatais com quadros técnicos competentes e de alto nível, como Furnas, Cemig e Cesp, que se concentraram, contudo, na geração de mais eletricidade. O setor de distribuição dessa energia sempre foi mais problemático, dados o rápido crescimento populacional e a necessidade – que se tornou prioritária – de ampliar a rede de distribuição, relegando a manutenção a segundo plano.
Sob esse ponto de vista, o sistema estatal tem grandes vantagens, porque permite um planejamento de longo prazo, tendo em vista o interesse público, definido pelo governo. Quando as empresas são privadas, a responsabilidade de seus dirigentes é proteger os interesses dos acionistas, maximizando o seu investimento. O interesse público é servido na medida em que não reduza a lucratividade da empresa.
O que empresas privadas fazem é obedecer aos termos dos contratos que assinaram quando da privatização, que não foram bem feitos – o que frequentemente é o caso –, e dificilmente mudarão o seu comportamento. Investimentos são feitos apenas quando sua rentabilidade é comprovada. Já o sistema estatal investe pesadamente, mesmo endividando-se, para atender as demandas sociais.
O que ocorreu, contudo, com o sistema de empresas estatais do setor elétrico do país é que, com o correr do tempo, orientações equivocadas dadas pelo governo (federal ou estadual) distorceram as suas prioridades. Exemplo dessa distorção é a situação calamitosa das estatais de vários Estados do Norte e do Nordeste, em que as empresas não cobram – por motivos políticos – pela energia elétrica fornecida a inúmeras prefeituras e até a alguns privilegiados. Nesse aspecto, empresas privadas são mais eficientes, porque são menos sujeitas a pressões políticas e cortam o fornecimento dos que não pagam suas contas.
Outro problema é a influência desproporcional dos interesses corporativos dos funcionários nas empresas estatais. Durante muitos anos a legislação adotada foi a de garantir uma remuneração mínima às estatais, ou seja, a tarifa cobrada dos usuários tinha de cobrir todas as suas despesas mais uma margem de lucro. Com isso, ao longo dos anos, a pressão interna fez seus dirigentes concederem aos funcionários benefícios como atendimento médico-psicológico-odontológico, 14º salário e outros que o restante dos assalariados do país não tem.
As empresas privatizadas, de modo geral, são mais bem administradas e mais eficientes, mas a sua prioridade é maximizar a remuneração dos acionistas, dentro dos limites da lei e das regras em vigor. Como conciliar esses interesses com o interesse público é o grande desafio.
Privatizações têm funcionado bem e redundaram em melhoria da eficiência das empresas em países industrializados estáveis, onde a população cresce pouco e as cidades já se estabilizaram há muitos anos. Em países em desenvolvimento com crescimento demográfico acelerado, e até caótico, a presença do Estado é essencial para dirigir investimentos para áreas carentes, nas quais as empresas privadas não se interessariam em investir. Exemplo disso é o Programa Luz para Todos, do governo federal, que tirou quase dez milhões de pessoas da escuridão e não custou muito às empresas estatais que o tornaram viável. Do ponto de vista estritamente financeiro-contábil, ele deu prejuízo, mas o retorno dos investimentos virá a longo prazo, além da melhoria imediata das condições de vida dos beneficiados.
O governo Fernando Henrique Cardoso tentou resolver os problemas das privatizações, preservando o papel do Estado, com a criação das agências reguladoras, cujo desempenho, contudo, é discutível, sobretudo a partir do momento em que se esvaziou o seu papel, contingenciando recursos e fazendo indicações políticas para esses órgãos, que são de caráter essencialmente técnico. Combinando o papel das agências com os recursos do BNDES – que podem induzir ou facilitar investimentos numa dada direção –, as privatizações feitas no período 1992-2002 tinham todas as condições para funcionar bem, combinando a eficiência da gestão privada com o interesse público.
Nas condições atuais, no entanto, com agências reguladoras fracas, contratos de concessão malfeitos (copiados, em geral, de contratos feitos em países com baixo crescimento populacional), fica difícil garantir uma prestação de serviços satisfatória à população, sobretudo na área de manutenção preventiva.
Ainda assim, as leis e os regulamentos vigentes permitem uma ação mais enérgica de órgãos do governo. Um caso exemplar foi a aplicação pelo Operador Nacional do Sistema de uma multa de mais de R$ 50 milhões a Furnas, responsável pelo “apagão” que atingiu vários Estados do Nordeste há alguns meses – “apagão” esse que se originou em manutenção deficiente. Este é o caminho a seguir, porque a aplicação de multas pesadas vai acabar convencendo as empresas (públicas e privadas) de que é mais barato melhorar o sistema do que pagar as multas.
* José Goldemberg é professor da Universidade de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Ciências. Em 2008, recebeu o Prêmio Planeta Azul, considerado o Nobel do Meio Ambiente.
** Publicado originalmente no site EcoD.