De segunda a sexta-feira, às 10h da manhã, dona Marinalva já está dentro da sala de aula, quando começa seus estudos no Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja). Ela está se alfabetizando desde 2008 na unidade Campo Limpo, localizada no bairro paulistano do Capão Redondo.
Aos 64 anos, dona Marinalva está no Módulo 2 – correspondente aos 3º, 4º e 5º anos do ensino fundamental. Apesar de ainda não estar formada, o aprendizado já trouxe alegria para sua vida. “Sinto muita felicidade em pegar os livros e saber ler. Adoro geografia e história”, conta sorrindo.
Dona Marinalva revela que é curiosa para descobrir os acontecimentos do passado, “do tempo da escravidão, quando os europeus chegaram no Brasil. Gosto de saber histórias antigas. Vou aprendendo aos pouquinhos”, completa, agora já dando risadas.
Compenetrada, os olhinhos dela estão sempre atentos para a professora Fernanda ou para a lousa. Marinalva participa da aula, acha graça das brincadeiras dos colegas, olha para o caderno da amiga ao lado para tentar ajudá-la na leitura de uma frase. Assim, a aula passa até às 12h15, hora de ir embora.
Na segunda-feira 5 de setembro, dona Marinalva trouxe uma frase que “achou bonitinha”, para a professora compartilhar com a sala. “Se o tempo é problema, eu não sou solução. Sou somente o que sei através da emoção”. Ela retirou o fragmento do livro que está lendo. Qual é a obra, dona Marinalva? “Ai, agora esqueci, mas vou trazer amanhã. Tenho que fazer um resumo para entregar. A professora está cobrando”, confessa.
Para esta quinta-feira, 8 de setembro, data em que é comemorado o Dia Internacional da Alfabetização, dona Marinalva já tem lição de casa: uma pesquisa da biografia de personalidades como Leonardo da Vinci e Mário Quintana.
A roça veio na frente
Dona Marinalva Oliveira Pereira vive em São Paulo (SP) há 38 anos. Ela nasceu em Iramaia (BA), município com quase 18 mil habitantes próximo a Feira de Santana. Cresceu na roça. Desde os oito anos, cultivava a terra, plantava e colhia feijão, milho, mandioca, mamona, abóbora, melancia e outros. “A terra não era nossa, mas o fazendeiro deixava a gente trabalhar nela para o nosso sustento.”
Nessa época, a mãe de Marinalva até mandava as crianças para a escola, mas apenas até abril. Quando chegava maio, a terra estava boa para plantar e, depois, colher. “Então ela tirava todo mundo do estudo. Como a gente ia aprender assim? Quando eu tava tentando querer saber de algo, tinha que ir todo mundo para a roça e deixava livro e caderno para lá”, lembra.
“Se a gente não fosse ajudar os pais, sozinhos eles não conseguiam trazer o alimento para nossa casa e nem vendê-lo, para comprar roupa ou sapato”. Foi assim até os 15 anos de Marinalva. “E a escola ficava lá”.
Aprendizado de fachada
Nessa idade, não houve como escapar. Dona Marinalva foi obrigada a frequentar o Mobral (o Movimento Brasileiro de Alfabetização, um projeto do governo federal, instituído em dezembro de 1967, que propunha a alfabetização funcional de jovens e adultos).
Com a ampliação do direito ao voto, a “ordem que veio da escola era de que todo mundo tinha que aprender para votar”, conta. “Mas aquilo foi só até conseguir fazer o nome à mão e o nome do lugar onde nasceu, apenas para tirar o título. Continuavam todos ali com uma leitura muito atrasadinha”, analisa agora.
O tempo foi passando, e aos 19 anos Marinalva casou. “Pronto, naquele momento, acabou a possibilidade de me formar. Você tem a casa e começam a nascer os filhos. Tinha um marido trabalhador, mas que bebia muito. Foi difícil durante muito tempo.”
Hoje, após três anos no Cieja, ela sabe escrever bem mais do que o nome. Consegue mandar uma cartinha para a família no Nordeste sem grandes dificuldades: “Já sei fazer muita coisa. Pode até sair uma ou outra palavra errada, mas é possível entender”.
Apesar disso, ela revela que a matéria de que menos gosta é língua portuguesa, justamente por causa da escrita. A leitura até acha mais fácil. “Mas quando eu aprender mais, vou passar a gostar”. Foi assim com a matemática, que Marinalva nem pensava que pudesse achar interessante aprender. “Também é uma das minhas matérias preferidas. Já faço minhas contas e mostro para minhas filhas verem se está certo”, conta orgulhosa.
Oportunidades passadas
Dona Marinalva ficou grávida dez vezes, sendo uma delas de gêmeos. No entanto, criou apenas sete filhos. As outras crianças acabaram falecendo. Já tinham nascido três, quando ela veio para São Paulo procurar emprego, após o fazendeiro vender as terras onde trabalhava com a família.
“Mas, arrumar emprego de quê?”, ela analisa hoje. “Só poderia ser em serviço pesado, porque eu não tinha estudo, nem meu marido”. Então, Marinalva foi contratada pelo Hospital Nove de Julho, localizado próximo à Avenida Paulista, para cuidar dos serviços gerais.
Viveram em casa alugada um ano e depois não puderam mais pagar. O jeito foi ocupar um terreno da prefeitura, sem esgoto na época, e montar um barraco de tábua. Dona Marinalva mora no mesmo local, no bairro Piraporinha, próximo a Santo Amaro, na zona sul da capital paulista. Mas, o lugar evoluiu. Hoje, ela tem um sobrado de três andares, já regularizado.
Marinalva trabalhou durante 28 anos no Hospital e resolveu se aposentar por tempo de serviço. “Perdi todas as oportunidades ali. Se naquele tempo eu soubesse o pouquinho que eu sei agora, tinha feito o curso para ser atendente ou trabalhar na copa, porque para ser copeira precisa saber ler e escrever também. Se eu tivesse estudado, saia de lá como uma supervisora”, fala com firmeza.
Mas, o que ela gostaria mesmo de ter feito é enfermagem. Incentivou suas três meninas a investirem no curso. “Ah, eu teria estudado isso sim”, diz empolgada.
A volta à sala de aula
Em casa há um ano, após se aposentar, as pernas começaram a inchar. Ficava muito tempo sentada no sofá. Ela passou a procurar uma motivação para sair. Foi quando comentou com uma colega que tinha muita vontade de estudar, quem lhe contou que o marido estava se formando no Cieja Campo Limpo.
“Tinha que colocar minha cabeça para funcionar. Já sentia que estava com sintomas de depressão. Minhas filhas falavam que eu não parecia a mesma pessoa”. Assim, começou e pretende ficar até garantir o diploma do ensino médio. “Estou aqui para acabar de realizar uma vontade. Pensava: como é lindo você chegar em um lugar e saber ler.”
Todos os sete filhos – hoje, entre 29 e 44 anos – concluíram o ensino médio. A maioria é formada em cursos tecnológicos e uma das meninas fez faculdade. Com os filhos “encaminhados”, inclusive quase todos casados, ela fica mais tranquila em prosseguir estudando.
Exemplo para a juventude
O ano que vem dona Marinalva já vai para o Módulo 3. Quando terminar, ganhará o diploma da 8ª série. Ela diz já ter planos para depois que tiver o ensino básico completo: quer continuar a estudar. Vai procurar cursos.
“Às vezes vejo alguns jovens tão desanimados. Penso ‘como pode?’. Se conseguíssemos saber o que vai acontecer daqui 40 anos na vida da gente e, então, aproveitar para estudar e estudar, seria tão bom.” Cerca de 40% dos jovens abandonam a última etapa da educação básica por desinteresse, de acordo com pesquisas. “Estão perdendo uma riqueza tão grande na vida deles”, pontua ela.
Dona Marinalva tem oito netinhos e agradece a Deus por estarem estudando. Um dos quatro meninos já até se formou no ensino médio. “Quanto mais eles se esforçarem, mais vão conseguir um caminho na vida para não sofrerem tanto.”
E lá vai ela
Vergonha de voltar a estudar já com idade avançada? “Eu não. Aqui é cheio de pessoas como eu. Falo em todo o lugar que eu estudo. Tem gente que fica impressionada. Não tive condições e hoje recebo os parabéns por isso”, responde com convicção.
“Sabe o que eu quero? Pegar meu cartão, tirar meu dinheiro, saber o que eu to fazendo. Isto é bonito! Sem ficar atrás dos meus filhos para pegar meu pagamento ou pedir a eles para depositarem algo no banco”, diz Marinalva. E lá vai ela, rumo ao Módulo 3.
* Publicado originalmente no Portal Aprendiz.