Nacional-desenvolvimentismo às avessas e a fragilidade econômica

“A redução da taxa de juro sem a mudança no regime macroeconômico pode criar mais problemas do que soluções”, afirma o economista da UFRJ Reinaldo Gonçalves.

Reinaldo Gonçalves.

“Redução da taxa de juro sem mudança no regime macroeconômico pode criar mais problemas do que soluções”, diz Reinaldo Gonçalves ao criticar a medida do Banco Central de reduzir a taxa de juros em 0,5% ao ano. Para ele, “reduzir o juro básico sem alteração na estrutura da taxa de juro tem efeito limitado. (…) Menos 0,5% ou 2,0% na taxa de juro adiantam muito pouco em termos da desestabilização macroeconômica do país”.

De acordo com Gonçalves, além de a economia brasileira estar bastante vulnerável nas esferas comercial, produtiva, tecnológica e monetário-financeira, o Brasil está aumentando a dívida pública por causa da alta taxa de juros e, em função disso, engessando o orçamento público. Para ele, em um contexto de instabilidade econômica global, o país terá dificuldades de enfrentar a crise econômica internacional porque três instrumentos fundamentais estão comprometidos: a distribuição de renda e riqueza, a inovação tecnológica e o gasto bélico. Ele explica: “A distribuição de renda no Brasil tem sido feita via política de previdência social e transferência que dependem dos gastos públicos. A política de salário mínimo ainda permite algum grau de liberdade. Por outro lado, é inimaginável qualquer política séria de distribuição de riqueza. Quanto à saída via progresso técnico, aumento de produtividade e competitividade, o Brasil tem estado, de fato, andando para trás com a maior dependência tecnológica observada no passado recente. A elevação dos gastos bélicos são, por seu turno, um não-tema”.

Gonçalves também critica a proposta do governo federal de apertar os cintos com os gastos sociais para dar condições de o país crescer com investimentos próprios na próxima década. “O aperto fiscal forte implica viés contracionista na economia. A pergunta é: De onde sairá o estímulo compensatório para a expansão da renda?”, questiona. O Brasil só terá condições de crescer, sem a dependência do capital externo, se “houver mudança no atual modelo de nacional-desenvolvimentismo às avessas, que foi herdado do governo Lula”, diz ele à IHU On-Line, na entrevista a seguir concedida por e-mail.

Reinaldo Gonçalves é formado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Obteve o título de mestre em Economia, pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-RJ, e de doutor em Letters And Social Sciences pela University of Reading, na Inglaterra. Atualmente leciona na UFRJ. É autor de Economia internacional. Teoria e experiência brasileira (Rio de Janeiro: Elsevier, 2004) e Economia política internacional. Fundamentos teóricos e as relações internacionais do Brasil (Rio de Janeiro: Elsevier, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em geral, os economistas criticam a elevação da Selic, mas alguns consideraram inadequada a redução da taxa de juros neste momento. Como o senhor vê a redução dos juros em 0,5%?

Reinaldo Gonçalves – Redução da taxa de juro sem mudança no regime macroeconômico pode criar mais problemas do que soluções. É lamentável, inclusive, que a presidente Dilma se manifeste idiossincraticamente a respeito da taxa de juro real. Isto só cria ruído e aumenta a instabilidade. Reduzir o juro básico sem alteração na estrutura da taxa de juro tem efeito limitado. Outra questão importante é que esta redução ocorre no contexto de estímulo à expansão irresponsável do crédito. Reduzir juros é como se alguém que tem obesidade mórbida resolvesse comer menos pão e, ao mesmo tempo, mantivesse péssimos hábitos de vida. Ou seja, menos 0,5% ou 2,0% na taxa de juros adiantam muito pouco em termos da desestabilização macroeconômica do país.

IHU On-Line – A proposta do Brasil é diminuir gradativamente a taxa de juros. Isso será possível em um contexto de crise econômica internacional?

Reinaldo Gonçalves – Não adianta reduzir os juros se for mantido, por exemplo, o regime de câmbio flutuante. O que acontecerá com a política monetária se o dólar explodir e houver inflação de custo? O Bacen não fará política monetária real porque Dona Dilma já se manifestou a favor de juro real da ordem de 2%? O regime macroeconômico brasileiro tem problemas sérios: além do tridente satânico, há essa expansão absurda do crédito e desperdício nos gastos públicos. Indivíduos, famílias e setor público estão cada vez mais endividados. Isto significa risco crescente, principalmente no contexto de instabilidade internacional. A contração do ingresso de fluxos financeiros internacionais pode, como ocorreu em 2008, provocar mais uma megadesvalorização cambial. A crise cambial vem, então, acompanhada de crise financeira, real e fiscal.

IHU On-Line – Que mudanças macroeconômicas nacionais seriam adequadas neste momento de crise internacional?

Reinaldo Gonçalves – O problema é que o Brasil tem perdido dois graus de liberdade. O primeiro é a redução do espaço fiscal (ou seja, menor margem de manobra em relação ao uso de políticas de gastos públicos). O segundo é o uso da política monetário-creditícia expansionista, tendo em vista a explosão do endividamento no passado recente. A dificuldade maior está no fato de que, no que se refere aos outros três principais instrumentos de maior impacto estrutural para enfrentamento da crise, o Brasil não tem margem alguma de liberdade ou, então, tem margem muito pequena. Estes três instrumentos são: a distribuição de renda e riqueza, a inovação tecnológica e o gasto bélico. A distribuição de renda no Brasil tem sido feita via política de previdência social e transferência que dependem dos gastos públicos. A política de salário mínimo ainda permite algum grau de liberdade. Por outro lado, é inimaginável qualquer política séria de distribuição de riqueza. Quanto à saída via progresso técnico, aumento de produtividade e competitividade, o Brasil tem estado, de fato, andando para trás com a maior dependência tecnológica observada no passado recente. A elevação dos gastos bélicos são, por seu turno, um não-tema.

Em síntese, dos cinco principais instrumentos de enfrentamento da crise o Brasil não possui os de maior impacto estruturante e tem perdido graus de liberdade nos instrumentos macroeconômicos de curto prazo (política fiscal e política creditícia). Neste sentido, a situação do Brasil para enfrentar a crise econômica é muito pior do que a de países desenvolvidos, que, apesar da perda de graus de liberdade nas políticas monetária, fiscal e creditícia, mantêm elevados graus de liberdade, principalmente, nas saídas via gastos bélicos e inovação tecnológica.

IHU On-Line – Quais são as causas e consequências da elevação da dívida pública brasileira?

Reinaldo Gonçalves – A principal causa é o extraordinário pagamento de juros. A mais importante consequência é o engessamento do orçamento público em decorrência do pagamento de juros desta dívida. Como o Brasil tem taxas de juros estratosféricas, o orçamento fica comprometido. Ademais, o crescimento da dívida pública tende a piorar a percepção de risco-país por parte dos investidores internacionais. Vale notar que a dívida pública federal interna em mercado saltou de 1,2 trilhão de reais em junho de 2008 para 1,7 trilhão em junho de 2011. Houve “salto quântico” de quase 50% em termos nominais e mais de 30% em termos reais. O governo federal gasta em média 10 bilhões de reais por mês de pagamento da dívida pública federal interna. Vale notar ainda a expansão da dívida em resposta à política de formação de reservas internacionais. As reservas internacionais têm custo muito elevado para o país (cerca de 1,5% do PIB), visto que o Tesouro capta no mercado interno a taxas superiores a 10% a.a. e aplica estas reservas no mercado internacional a taxas inferiores a 2%. O empréstimo que o Brasil fez ao FMI rende ainda menos (0,52% a.a). Ou seja, o Brasil gasta 950 milhões de dólares anualmente pelo empréstimo que fez de 10 bilhões ao FMI. Ou seja, mais uma fonte de desperdício de recursos públicos e de aumento do endividamento.

IHU On-Line – Como o senhor recebeu a notícia do aumento do superávit primário em 10 bilhões? Quais as implicações desse aumento?

Reinaldo Gonçalves – O Brasil tem déficit estrutural nas contas públicas e, portanto, fica refém de ajustes fiscais recorrentes. Isso resulta da persistência do “tridente satânico” que conduz a política macroeconômica: juros altos, câmbio flexível e necessidade de superávit primário. O Brasil tem forte desequilíbrio fiscal na forma do serviço da dívida pública. Uma das implicações deste ajuste fiscal recorrente é a trajetória de instabilidade macroeconômica e o fraco desempenho da economia brasileira.

IHU On-Line – Quais são os riscos de a crise econômica internacional afetar a economia brasileira?

Reinaldo Gonçalves – Já está afetando. Queda dos preços das commodities e desaceleração da economia mundial já têm tido impacto. Por exemplo, a indústria tem tido desempenho medíocre (aumento de 1,4% nos sete primeiros meses de 2011 em relação a igual período do ano anterior). O próprio desempenho do PIB já mostra significativa desaceleração (crescimento de 3,6% no primeiro semestre de 2011 comparativamente a igual período do ano anterior). A taxa de investimento tem se reduzido e mantido em níveis medíocres (abaixo de 18% do PIB). Vale notar que a queda dos preços internacionais das commodities foi usada para justificar a redução da taxa de juros. Ademais, a previsão do FMI de crescimento da renda do Brasil é de 4,1% em 2011 e 3,6% em 2012. A economia mundial, por seu turno, deve crescer 4,3% e 4,5%, respectivamente. Para o conjunto dos países em desenvolvimento, as previsões são de 6,6% em 2011 e 6,4% em 2012. Ou seja, como no passado recente, o Brasil continua andando para trás. Estas projeções são, naturalmente, otimistas. O fato é que o Brasil tem muitas fragilidades e enorme vulnerabilidade externa nas esferas comercial, produtiva, tecnológica e monetário-financeira. O resultado é que o Brasil continua com “blindagem de papel crepom”. Atualmente ainda mais frágil que em 2008, devido ao aumento do passivo externo financeiro líquido e do nível de endividamento geral.

IHU On-Line – Quais são as causas da vulnerabilidade externa brasileira a que o senhor se refere?

Reinaldo Gonçalves – O grande problema é o passivo externo na forma de investimento em ações, empréstimos de matrizes estrangeiras para filiais brasileiras e investimento em títulos de renda fixa no país que chegam a 500 bilhões de dólares. O Brasil está “short”, “vendido”, “descoberto” em algo como 600 bilhões de dólares (descontando as reservas internacionais e os ativos reais das empresas estrangeiras no país). Este é o problema central da vulnerabilidade externa do Brasil na esfera monetário-financeira internacional, além, naturalmente, do elevado grau de liberalização financeira.

IHU On-Line – Quais são as causas da inflação? Com a queda dos juros pode se esperar alguma mudança?

Reinaldo Gonçalves – O fenômeno da inflação é multivariado. Depende das condições de demanda e oferta, no front doméstico e no front internacional. A inflação depende também das expectativas. Quando a presidente Dilma se manifesta a respeito da taxa de juros real, tende a deteriorar o quadro de expectativas, que já é instável no Brasil. É “imbecilidade esférica” autoridades (presidente, ministro et caterva) se manifestarem a respeito de preços-chave da economia (juros, câmbio, etc). Isto só cria ruído, aumenta a variabilidade de expectativas e pode provocar desgaste e perda de governabilidade. O fato é que o impacto da política monetária sobre a inflação depende do nível e da natureza da pressão inflacionária, bem como de outros elementos (por exemplo, condições internacionais de demanda e liquidez).

IHU On-Line – Uma das propostas do governo é fazer um aperto fiscal forte para o país crescer na próxima década com recursos próprios. Essa é uma possibilidade?

Reinaldo Gonçalves – O aperto fiscal forte implica viés contracionista na economia. A pergunta é: De onde sairá o estímulo compensatório para a expansão da renda? A expansão do consumo via crédito é cada vez mais arriscado e com retornos decrescentes. A expansão do consumo via políticas de previdência social e transferências fica comprometida pelo corte de gastos de custeio. A demanda externa (exportação) está comprometida cada vez mais pela reprimarização das exportações e perda de competitividade internacional (crescente penetração das importações). A desindustrialização, a dessubstiuição de importações e a reprimarização tendem a comprimir a taxa de investimento no longo prazo. Ademais, vale destacar que o Brasil está fazendo uso crescendo do financiamento externo para tocar (de forma relativamente medíocre) o processo de acumulação de capital. Estes fatos aumentam o risco de trajetória de instabilidade e crise, inclusive no curto e médio prazos.

IHU On-Line – O Brasil tem condições de se livrar da dependência do capital externo e crescer com recursos próprios?

Reinaldo Gonçalves – Somente se houver mudança no atual modelo de nacional-desenvolvimentismo às avessas que foi herdado do governo Lula. Durante o governo Lula, os eixos estruturantes do nacional-desenvolvimentismo foram invertidos. O que se constata claramente é: desindustrialização, dessubstituição de importações; reprimarização das exportações; maior dependência tecnológica; maior desnacionalização; perda de competitividade internacional, crescente vulnerabilidade externa estrutural em função do aumento do passivo externo financeiro; maior concentração de capital; e crescente dominação financeira, que expressa a subordinação da política de desenvolvimento à política monetária focada no controle da inflação.

Na medida em que o governo Dilma implementa o nacional-desenvolvimentismo com “sinal trocado”, reduz a capacidade estrutural do Brasil de resistir a pressões, fatores desestabilizadores e choques externos. Isso ocorre em todas as esferas: comercial (desindustrialização, dessubstituição de importações, reprimarização e perda de competitividade internacional); tecnológica (maior dependência); produtiva (desnacionalização e concentração do capital); e financeira (passivo externo crescente e dominação financeira). Em consequência, lança-se o país em trajetória de longo prazo de instabilidade e crise no contexto de crescente globalização econômica. Ou seja, durante o governo Lula são cometidos erros estratégicos, repetidos no governo Dilma, que comprometem estruturalmente o desenvolvimento do país no longo prazo. Evidência empírica a este respeito pode ser encontrada neste link.

IHU On-Line – O projeto orçamentário do governo pretende expandir o gasto público acima do crescimento do PIB em 2012. Como o senhor vê essa questão?

Reinaldo Gonçalves – Atualmente o problema central não é tanto o nível do gasto público como a sua composição e eficiência. Reorientar recursos públicos (por exemplo, via BNDES) para financiar a reprimarização e a concentração e exportação de capital é certamente um equívoco. Usar recursos públicos para financiar a expansão do consumo dos indivíduos com altas taxas de juros e a elevação dos preços dos ativos reais (imóveis) também é um erro. Usar recursos públicos para financiar a acumulação de capital de empresas estrangeiras no país é estupidez. Financiar obras de infraestrutura de duvidosa relação benefício/custo é um problema sério. A expansão dos gastos públicos que provocam o aumento do passivo externo do país é erro grave. Ou seja, expandir gasto público para financiar o nacional-desenvolvimentismo às avessas é erro estratégico pelo qual pagaremos um preço alto no horizonte previsível.

* Publicado originalmente no site IHU On-Line.