As conferências do clima, que reúnem representantes de todos os países para pensar alternativas ao aquecimento global e às mudanças climáticas, reproduzem o “confronto do mercado internacional de mercadorias, quer dizer, um confronto econômico entre Estados Unidos e China pela produção e o consumo”, declara Ronaldo Serôa da Motta à IHU On-Line em entrevista concedida por telefone.
Apesar de serem os países mais relutantes em participar de um acordo global, China e Estados Unidos são “os que mais têm desenvolvido e exportado tecnologia de baixo carbono. A potência econômica desses países faz com que o desenvolvimento tecnológico e produtivo seja muito grande, o que acaba também atraindo o desenvolvimento da economia de baixo carbono”, assinala.
De acordo com o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as nações deveriam ter chegado a um acordo global para dar continuidade a Kyoto, que finaliza em 2012. Entretanto, o impasse internacional continua: “Pelas declarações da Índia, África do Sul, China e Brasil, os países em desenvolvimento se negam a aceitar qualquer discussão se não for renovado o Protocolo de Kyoto e, em contrapartida, os países ricos só renovam o Protocolo se os emergentes se comprometerem com o acordo”.
Ronaldo Serôa da Motta é doutor em Economia pela University College London, ex-diretor da Agência Nacional de Aviação para as áreas de Pesquisa e Relações Internacionais, ex-diretor de Políticas Ambientais do Ministério do Meio Ambiente. É professor de Economia da Regulação e Defesa da Concorrência e de Economia Ambiental do IBMEC-RJ. Também leciona Regulação Econômica e Regulação Ambiental em cursos de MBA da FGV-RJ, PUC-Rio e UFRJ.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que avanços foram obtidos nas duas últimas conferências sobre o clima (Copenhague e Cancún)?
Ronaldo Serôa da Motta – Copenhague e Cancún, para muitos, foram um retrocesso porque em Copenhague não foi firmado um acordo global vinculante. No final da conferência alguns países apresentaram ofertas de redução de emissões voluntárias. Por outro lado, em Cancún, alguns avanços foram mais materializados na área de financiamentos através da criação de um fundo do clima que pudesse financiar ações de mitigação e adaptação em países que não tivessem capacidade de financiamento e, principalmente, da criação de algum instrumento ou mecanismo que valorizasse as reduções de emissões de gases do efeito estufa no controle do desmatamento em área florestal e na proteção de florestas.
Houve avanços em outros mecanismos da Convenção, os quais são considerados necessários: os países em desenvolvimento, a partir do Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação – REED, se comprometeram com o esforço global no combate ao aquecimento do planeta. É importante lembrar que a Convenção do Clima não diferencia países desenvolvidos e países em desenvolvimento: a China hoje é o maior emissor anual de gases do efeito estufa, mas não é a principal causa do estoque de gases no planeta porque esse estoque de gases é decorrente de 200 anos e o país começou a crescer recentemente, da mesma maneira que o Brasil. Então, a responsabilidade é dos países desenvolvidos. Neste espírito a Convenção foi definida. Sempre ficou muito claro e evidente que a responsabilidade é comum, mas diferenciada, de acordo com o desenvolvimento e a capacidade de financiamento de cada país.
Brasil
O Brasil está muito confortável nesta situação porque as emissões brasileiras são basicamente oriundas do desmatamento e, ao serem reduzidas, não afetam a economia interna, diferentemente da China e da Índia, onde a principal fonte de emissão de gases é a energética. Portanto, se fossem reduzir as emissões de gases, esses países precisariam mudar relativamente o preço da energia e isso afetaria a economia como um todo. No caso do Brasil, o desmatamento gera um impacto regional e não afeta todos os setores econômicos. Portanto, é muito difícil para países como China e Índia, nesta decolagem econômica de desenvolvimento que estão vivendo, se comprometerem a reduzir o consumo energético de maneira drástica.
O Brasil tem uma matriz energética limpa. Daqui a 20 anos, quando o país estiver com desmatamento zero, conforme o compromisso assumido, terá que reduzir emissões e se preocupar particularmente com a emissão de gases do efeito estufa gerada pelo esgoto e pelos resíduos sólidos. Essa preocupação é positiva e terá um impacto local, pois o país vai melhorar o tratamento de lixo, de esgoto e diminuir o desmatamento.
A grande dúvida é saber o que o Brasil fará com o gás do pré-sal no futuro. Certamente o país vai ter incentivos para termelétricas e, ao mesmo tempo, vai se comprometer em manter uma matriz energética limpa. Mas esse será um debate para os próximos 20 anos.
IHU On-Line – O que dificultou, em sua opinião, a renovação do Protocolo de Kyoto nas últimas Conferências do Clima?
Ronaldo Serôa da Motta – Se pudesse resumir, diria que se reproduz nessas conferências do clima o confronto do mercado internacional de mercadorias, quer dizer, um confronto econômico entre Estados Unidos e China pela produção e consumo. Nessa situação, a Europa tenta se aproveitar do vácuo desses dois países. Como o Brasil está em “alta” na mídia e é visto como uma nova força de liderança econômica, o que se vê é a reprodução de um cenário político e econômico mundial: a dificuldade é os Estados Unidos e a China aceitarem fazer um esforço para reduzir emissões de gases do efeito estufa.
A China alega que o esforço dos Estados Unidos deve ser maior porque a economia norte-americana já está desenvolvida, enquanto que grande parte da população chinesa está fora da sociedade de consumo. Por outro lado, os Estados Unidos alegam uma concorrência desleal com a China em função da taxa de câmbio, o que deixa os norte-americanos menos competitivos. A China, em contrapartida, diz que os Estados Unidos estão querendo boicotar o seu crescimento. Na outra esfera, a Índia alega que sua população é dez vezes mais pobre que a brasileira e a chinesa e que, portanto, precisa se desenvolver.
O Brasil, por mais que tenha melhorado economicamente, também enfrenta problemas de desigualdade e tem aspiração de desenvolvimento. Portanto, o papel do país é quase que de mediador entre os outros países.
A comunidade europeia não está interessada em julgar que país deve emitir mais ou menos gases, pois ela já está contribuindo para reduzir as emissões de gases do efeito estufa. E assumiu esse compromisso porque, em caso de crise climática, será a região mais afetada em termos de civilidade climática, redução da produtividade agrícola, falta de água. Claro que países pobres também serão afetados.
O contexto é este: se China e Estados Unidos se comprometerem com metas, os outros países também irão aderir a um acordo. Enquanto as grandes economias não se resolverem, o Brasil fica apoiando a China e tentando fazer um acordo global, mas sempre com a visão de um país em desenvolvimento.
Desenvolvimento e tecnologia
É curioso que, ao mesmo tempo em que China e Estados Unidos relutam em participar de um acordo, são, por outro lado, os países que mais têm desenvolvido e exportado tecnologia de baixo carbono. A potência econômica desses países faz com que o desenvolvimento tecnológico e produtivo seja muito grande, o que acaba também atraindo o desenvolvimento da economia de baixo carbono.
Apesar disso, os estudos mostram que os progressos voluntários dos Estados Unidos, China, Brasil e Europa ainda são pouco para evitar o desastre do aumento da temperatura de dois graus até 2100. Então, a busca de mais incentivo para a economia de baixo carbono é insuficiente para resolver os problemas climáticos, porque o esforço é muito maior do que as vantagens econômicas atuais. Tem que haver uma política de incentivo e subsídio a tecnologias de baixo carbono e impostos sobre o uso de tecnologias de alto carbono. Nenhum país está querendo fazer isso de forma muito acintosa – exceto a comunidade europeia –, porque isso reduz essa capacidade de desenvolvimento.
Estamos vivendo esta situação e não ousaria dizer quando ela vai se resolver. Sabemos quais são os riscos. Os países se comprometeram em 1996 a reduzir 6% das emissões. Esse acordo finaliza em 2012 e já deveriam ter elaborado um novo acordo para o segundo período, mas não ele ainda foi conseguido em Copenhague, nem em Cancun. E, pelas declarações da Índia, África do Sul, China e Brasil, os países em desenvolvimento se negam a aceitar qualquer discussão se não for renovado o Protocolo de Kyoto e, em contrapartida, os países ricos só renovam o Protocolo se os emergentes se comprometerem com o acordo.
Então, a conjuntura atual indica que, além de não se chegar a um acordo global mais forte, vão se perder os acordos feitos até então. Veremos um retrocesso: os países estão escolhendo quem vai colocar a culpa em quem pelo fracasso climático. A opinião pública se preocupa com isto e espera que os governantes tenham a capacidade de articular um acordo que evite um grande desastre no futuro.
IHU On-Line – Com a elaboração da Política Nacional sobre Mudanças do Clima, o Brasil se comprometeu em reduzir entre 36,1% e 38,9% as emissões projetadas até 2020. Sendo este um compromisso nacional voluntário, qual a expectativa em relação ao cumprimento da meta? O esforço nacional para reduzir as emissões de gases do efeito estufa deve se concentrar em algum setor específico (agropecuária, energético, preservação de florestas)?
Ronaldo Serôa da Motta – Esta mudança do Marco Regulatório de 2009 foi um grande avanço, inovou, porque, até então, o Brasil não tinha um Marco Regulatório. Além disso, foi uma proposta muito ousada no controle do desmatamento e, em segundo lugar, na redução da emissão de carbono na agricultura brasileira, que é uma das mais intensivas em carbono. Nossa vantagem territorial também leva a um custo elevado de transporte, e é lógico que a expansão da fronteira agrícola do Centro-Oeste significa maior custo em transporte. Então, se a agricultura brasileira quiser manter o grau de competitividade de hoje, terá que mudar algumas práticas para o futuro. Esse é um grande desafio para a agricultura.
O desmatamento tem sido reduzido em função da política governamental atuante, a qual está em xeque com o novo Código Florestal. A lei tem objetivos e planos corretos, mas a implementação está iniciando. Por enquanto, as iniciativas não estão dando certo, em particular na formulação dos planos setoriais por parte do governo. Por outro lado, o setor privado deveria participar deste plano, dizendo como pode contribuir, mas eles utilizam uma tática de não atuar de forma efetiva, de ficar aguardando, porque não há interesse.
Então, há uma falha de governança. O Brasil não está conseguindo avançar, agora é natural que isto aconteça em qualquer novo Marco Regulatório. Toda vez que o governo tenta mudar as regras do jogo há uma posição negativa.
IHU On-Line – De acordo com esta Política Nacional, os setores de agropecuária e energia precisam se comprometer com as metas de redução das emissões de gases. A indústria, por enquanto, fica de fora deste esforço?
Ronaldo Serôa da Motta – A indústria não vai participar desse esforço inicial de reduzir as emissões até 2020 porque ela representa 10% das emissões. Se o país tiver que obrigar a indústria a cortar 50% das emissões, ela irá produzir muito pouco. Então, o mais importante, e o mundo inteiro concorda com isto, é o Brasil reforçar os esforços no controle do desmatamento, comprometendo-se em reduzir 5%, mais 15% na agricultura, 15% na energia e 5% na indústria.
A indústria brasileira ainda está preocupada em melhorar as condições de trabalho, formar mais mão de obra, pagar dívidas, importar equipamentos novos. Então o meio ambiente não é algo que preocupa. Mas isso pode ser um tiro no pé, porque a mudança tecnológica vai acontecer tão rapidamente que daqui a dez anos as indústrias não conseguirão competir com os chineses porque, ao construírem novas empresas, eles (os chineses) aplicam o capital mais rico possível. A economia chinesa está renovando seu estoque de capital em um curto espaço de tempo. Enquanto isso, o crescimento brasileiro esbarra nos investimentos. Então, daqui 15 anos, a China vai ser muito mais rica. O pequeno capital brasileiro ainda não acordou para isso e não tem como acordar sem a ajuda do governo no sentido de informar sobre a tecnologia gratuita e exigir um cumprimento mandatório.
IHU On-Line – O REED tem sido um bom instrumento para os países cumprirem as metas de emissão de gases do efeito estufa?
Ronaldo Serôa da Motta – Poderia ser, mas não é. O REED tem um grande programa que chamamos de vazamento. Um país tem uma floresta e recebe dinheiro para manter a floresta em pé, mas aí eu pego o seu dinheiro, compro outra floresta e a desmato. Essa atitude é diferente, por exemplo, de eu pegar meu carro e, em vez de colocar gasolina, colocar álcool e andar dez quilômetros. Essa seria uma opção energética que tem uma redução de emissão no ato. Na floresta não ocorre isso; se a floresta pegar fogo e eu desmatar outra, não vai se reduzi as emissões. Então, a permanência do vazamento é uma coisa muito séria. É preciso cercar o processo de validação e verificação, que é muito mais complexo. Por isso o REED foi rejeitado. Vai demorar alguns anos para se preparar a fim de não haver vazamento. No dia em que se conseguir isso, países como o Brasil, Indonésia, Malásia e alguns países da África poderão receber créditos pela preservação. É uma opção barata. Nós precisamos fazer um estudo para ver até que ponto o custo direto é barato, se tiver um efeito no controle do desmatamento.
IHU On-Line – Qual sua expectativa em relação à Rio+20 e a proposta de debater sobre economia verde como alternativa para combater a pobreza?
Ronaldo Serôa da Motta – Tenho uma expectativa muito grande em relação à economia verde, porque pode haver crescimento econômico, consumo e redução da pobreza.
Entretanto, dificilmente um governo que se reelege de quatro em quatro anos estará preparado do ponto de vista técnico. Continuará o mesmo problema político, pois nenhum país está disposto politicamente a aderir a uma mudança. Ainda discutiremos muito esse assunto e talvez possamos emergir com uma nova consciência e percepção.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.