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Feminicídio antes de nascer

Uma reunião do Kopal no distrito de Uttarkashi. Foto: Nitin Jugran Bahuguna/IPS.

Dehradun, Índia, 21/9/2011 – A Índia é o quarto país mais perigoso para as mulheres, mas a prática generalizada de abortar seletivamente os fetos femininos pode convertê-lo no mais hostil para elas. No Estado de Uttarakhand, no Himalaia, onde, para a população infantil entre zero e seis anos de idade, a relação caiu de 886 meninas para cada mil homens – segundo dados provisórios do Censo 2011 –, consolida-se um forte movimento da sociedade civil contra os abortos seletivos. Os antecedentes desse Estado são muito piores do que a proporção nacional, que caiu para 914 meninas para cada mil meninos, em comparação com as 927/1000 no último Censo, de 2001.

Os demógrafos extrapolam que, se no censo de 2001 “faltavam” seis milhões de meninas, a cifra aumentou para 7,1 milhões este ano. “A tecnologia e a alfabetização tiveram um papel na promoção do aborto seletivo de fetos femininos, como ocorreu com a falta de princípios e de ética na profissão médica”, disse Shashi Bhushan, da Shri Bhuvaneshwari Mahila Ashram (SBMA), uma organização não governamental que ajuda a proteger os direitos das mulheres. Bhushan se referia à proliferação de clínicas ilegais de determinação do sexo utilizando equipamentos baratos de ultrassom em todo Uttarakhand, que são patrocinadas por pessoas educadas.

Rahmati Devi, de 45 anos, é “dai” (assistente tradicional de partos) no distrito de Nainital, e afirma que os exames de determinação do sexo que usam imagens obtidas por ultrassom agora são rotina nas aldeias do norte de Uttarakhand. “Estes exames sempre acontecerão pela pressão do marido ou de membros de sua família”, disse Devi à IPS. “Os endereços dos centros que fazem esses exames clandestinamente são passados boca a boca”, e os estabelecimentos cobram entre US$ 52 e US$ 105 para realizá-lo, acrescentou.

Os comitês de controle criados na Lei de Técnicas de Diagnóstico de Pré-Concepção e Pré-Natal, que proíbem os exames de determinação do sexo, não estão ativos na maioria dos distritos de Uttarakhand, salvo por vistorias esporádicas em clínicas suspeitas de realizarem tais procedimentos ilegalmente. A SBMA realiza uma campanha há três anos para conscientizar contra esta prática, dentro do programa Kopal (Içar). Com apoio da Plan International e outras 13 organizações não governamentais, a entidade se centra em temas como os efeitos físicos e psicológicos adversos sobre as mulheres que sofrem abortos para eliminar os fetos femininos.

Quando Madan Singh e sua mulher, Radha Devi, em Rampur, no distrito de Chamoli, consideravam realizar um exame para determina o sexo de seu bebê para evitar ter uma terceira filha, um trabalho de rua em sua aldeia do projeto Kopal os convenceu a não fazê-lo. Estes êxitos incentivam ativistas como Bhushan. “Em nosso trabalho com organizações comunitárias e juvenis também vimos um aumento no registro de nascimentos e nos partos feitos no contexto institucional”, afirmou.

Bhushan acredita que Estados como Uttarakhand apenas começam a despertar para a enormidade do problema. “O que se descreve como ‘falta de meninas’ equivale a assassinato em massa de meninas, ou feminicídio”, afirmou. Reconhecendo que as atitudes sãs em relação às meninas devem começar cedo, a iniciativa Kopal inclui mobilizar grupos de jovens para que sensibilizem seus pares e os idosos sobre o papel vital das meninas em qualquer comunidade equilibrada.

“O dote continua sendo um fator poderoso para não ter filhas. Uma família com mais homens se considera forte, e os filhos varões são vistos como bens”, afirmou a trabalhadora social Bina Kala, de 35 anos, da aldeia de Anjanisain, no distrito de Tehri. Sob o contexto do Kopal, Bina ajuda a organizar os “fóruns das crianças da montanha”, que dão oportunidade para que grupos de meninos e meninas debatam sobre as relações de gênero.

“Nessas reuniões enfatizamos que nas famílias rurais a menina contribui com a economia familiar muito mais do que o menino. Ela ajuda a mãe nas tarefas domésticas e inclusive sacrifica seus sonhos para que a família possa investir nos irmãos”, disse Bina. As ameaças à saúde e às atitudes culturais em relação às mulheres foram fatores mencionados em uma pesquisa feita pelo TrustLaw, um serviço de notícias administrado pela Thomson Reuters Foundation, que em junho qualificou a Índia como o quarto país mais perigoso do mundo para as mulheres, depois de Afeganistão, Congo e Paquistão.

Em uma reunião do Kopal realizada no começo deste ano no distrito de Pithoragarh, várias meninas se queixaram de que, apesar de cada vez haver mais educação e alfabetização, pouco mudou em seu status nas aldeias de Uttarkhand. Nessa ocasião, “os meninos responderam jurando que quando voltarem para suas aldeias serão mais sensíveis com suas irmãs e outras meninas”, disse Bina.

Em outro encontro, no distrito de Haridwar, Sonia, adolescente de 17 anos, se manifestou totalmente contra os abortos seletivos. “Nos reunimos regularmente e discutimos como superar a brecha de gênero. Nossa mensagem é que se deve ouvir as meninas, e que elas têm direito a um tratamento igualitário”, disse Sonia, que quase abandonou a escola, mas agora continua os estudos com apoio da SBMA.

Este tipo de iniciativa da sociedade civil é apoiada por programas dos governos estaduais criados para potencializar o valor das meninas perante a comunidade. Há três anos, o governo de Uttarakhand anunciou o Programa Nanda Devi para Meninas, pelo qual para cada menina nascida depois de janeiro de 2009 em famílias que vivem abaixo da linha de pobreza corresponde um depósito fixo de US$ 105 que pode ser retirado quando a beneficiária completar 18 anos e tiver terminado o ensino secundário. “Esses programas são lentos, mas, sem dúvidas, conseguem uma mudança em uma sociedade onde o desejo de ter um herdeiro homem é um assunto social complexo”, disse Bhushan. Envolverde/IPS