As novas gerações de judeus alemães têm uma relação mais distante em relação a fatos como o Holocausto e a preservação da cultura se torna uma preocupação.
“Com relação à questão judaica, o Führer decidiu fazer uma limpeza étnica. Ele profetizou que se os judeus causassem uma nova guerra mundial, eles viveriam para ver sua aniquilação total. Isso não foi apenas uma frase. A guerra mundial está acontecendo agora e a aniquilação dos judeus será sua principal consequência” – Diário pessoal de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista de Adolf Hitler, em 1941.
O trecho acima faz referência à “Solução Final”, nome pelo qual ficou conhecido o plano nazista de genocídio sistemático da população judaica durante a Segunda Guerra Mundial. Setenta anos se passaram deste momento até agora. Muito aconteceu desde então. O Tribunal de Nuremberg julgou os crimes cometidos pelos nazistas, o Estado alemão pagou indenizações às vítimas do Holocausto, e se esforçou para construir uma imagem positiva do país nos anos seguintes ao conflito. A Guerra Fria polarizou o mundo entre lideranças norte-americanas e soviéticas por cerca de 45 anos. A disputa também dividiu o país em dois: a Alemanha Ocidental e Oriental. Em 1989, com a reunificação alemã e a adoção de leis de imigração, o número de judeus vindos de antigos países soviéticos fez com que a comunidade judaica na Alemanha quadruplicasse o seu tamanho.
Heide Sobotka, responsável há 18 anos pela editoria de sociedade do jornal judaico-alemão Jüdische Allgemeine, conta que a entrada desses imigrantes fortaleceu a sociedade judaica com a construção de novas sinagogas e centros judaicos, além de ter contribuído para a reconquista da autoconfiança dos judeus. Apesar do aparente cenário positivo, algumas questões ainda permanecem: quão integrados eles estão na sociedade alemã? Como lidam com o passado histórico? Quem são as diferentes gerações de judeus vivendo no país? Que perspectivas podem ser traçadas para os próximos anos?
Ser judeu na Alemanha pós-guerra
Antes da Segunda Guerra Mundial, cerca de 500 mil judeus viviam na Alemanha, número que foi reduzido para alguns milhares ao final do conflito. Andreas Brämmer, vice-diretor do Instituto de História Judaica Alemã, explica que, logo após a Guerra, existiam diferentes grupos de judeus dentro do país. “Havia os casados com alemães não judeus, que também foram perseguidos, mas tinham um certo estado de segurança por conta do casamento. Também havia o grupo dos chamados ‘submarinos’, que foram aqueles que conseguiram se esconder ou mudaram suas identidades durante a Guerra. E, finalmente, existiam os sobreviventes dos campos de concentração.”
Permanecer no país que deu origem às ideias do antissemitismo definitivamente não era a decisão mais fácil de ser tomada pelos judeus que se encontravam em terras alemãs. Segundo Brämmer, em 1947, havia 254 mil judeus vivendo na Alemanha sem a intenção de ficar. Eles aguardavam para seguir para Israel (criado em 1948) ou para os Estados Unidos. Apesar de muitos terem realmente partido, um grupo permaneceu. Eram pessoas emocional ou fisicamente abaladas pela Guerra, que não se encontravam em condições de emigrar, além daqueles que haviam se casado ou encontrado uma oportunidade profissional. Esses, que por diferentes motivos resolveram permanecer em solo germânico, eram frequentemente apontados como traidores pela comunidade judaica internacional que não conseguia compreender o porquê de eles se estabelecerem ali.
Arnold Simmenauer, 21 anos, é judeu e vive na Alemanha, e explica que mesmo nos dias de hoje não é fácil lidar com o assunto. “Meu avô, que fugiu do país antes da Guerra e foi viver na França, não consegue entender até hoje porque eu quero viver aqui. E não é apenas entre os mais velhos que existe esse preconceito. Quando estudei na França por alguns anos, meus colegas não compreendiam como eu podia ser judeu e ao mesmo tempo viver na Alemanha.”
A reunificação alemã e os migrantes
Já no início dos anos 1950, instituições judaicas foram fundadas, sinagogas reconstruídas e centros culturais criados. Mas foi em 1989, com a reunificação alemã, que a comunidade judaica passou por uma grande mudança. Entre os judeus soviéticos, apesar das mudanças políticas em seus respectivos países, existia certo receio em relação a um crescente sentimento de antissemitismo entre a população. Depois de negociar com o Conselho Central Judaico-Alemão, a Alemanha adotou leis de imigração para judeus vindos da URSS, admitindo-os como refugiados. Desde então, o número de judeus no país quadruplicou.
“Esse boom na imigração teve um impacto enorme na cultura judaica na Alemanha”, explica Brämmer. Isto porque a maioria dos imigrantes que vieram da antiga União Soviética não era considerada judeus pela lei judaica (que considera judeus os filhos de mãe judia ou convertidos ao judaísmo). Na União Soviética, ser judeu significava ter uma nacionalidade registrada em seus passaportes e ponto. Heide Sobotka explica que os imigrantes que viveram durante a ditadura soviética eram “judeus alienados”. “Eles eram judeus apenas no seu passaporte, pois, devido a represálias, não podiam trazer sua cultura a público. Entretanto, foi com esse mesmo passaporte que eles puderam imigrar para a Alemanha em busca de melhores condições.” E assim se criou o grande desafio em relação aos “novos judeus”: como integrar estes imigrantes nas comunidades oficiais judaicas, uma vez que eles não preenchiam os requisitos das leis tradicionais do judaísmo?
“Além das dificuldades naturais, os judeus soviéticos tinham uma outra perspectiva do Holocausto, em que eles se enxergavam muito mais como aqueles que chegaram para libertar os judeus dos campos de concentração do que como vítimas”, explica Brämmer. “Tudo isso acabou tornando mais difícil sua aceitação dentro da sociedade alemã”, complementa. Há ainda o fato de que a comunidade judaico-alemã não estava preparada para lidar com tamanho número de imigrantes, tanto em termos de infraestrutura quanto financeiramente. A integração de cem mil novos membros numa comunidade que abrigava 30 mil não foi fácil. Nos últimos anos, a infraestrutura se expandiu, mas ainda é um problema. A quantidade de rabinos cresceu de 15 para 42, mas outros ainda são necessários. Muitas comunidades tiveram que se virar sem um rabino. O Conselho Central Judaico-Alemão empregou três rabinos visitantes para oferecer a essas comunidades instrução religiosa. Entretanto, esta ainda não é a situação ideal. O fato de imigrantes estarem crescendo num Estado ateísta, onde o regime foi hostil aos judeus no passado, acaba levando muitos a uma alienação em relação aos valores da cultura judaica.
As novas gerações e a memória
Sobre a integração social, o jovem Arnold explica que possui “duas vidas”: uma dentro da comunidade judaica e outra com seus amigos alemães. “Não me sinto primeiro judeu e depois outra coisa. Primeiro, vem minha vida, e depois, minha religião. Entretanto, mantenho algumas tradições judaicas como o Bar Mitzvah, Hannuka e Yom Kupur.”
Maksim Aizikovitch, 25 anos, também judeu e alemão, conta que costumava respeitar mais as tradições quando era criança e adolescente, pois frequentava uma escola judaica. Desde que passou a viver sozinho, ele foi cortando os rituais e tradições. “Eu tento manter o máximo que consigo dos costumes. Eu diria que sou um judeu tentando encontrar um caminho para conviver com sua religiosidade nos dias de hoje.”
F.T., 26 anos, que preferiu não se identificar, vive em Berlim e diz que ainda mantém algumas tradições como o Shabbat (dia de descanso semanal do judaísmo) e em relação ao seu círculo de amigos explica que a maioria é judia. Já Maksim mantém dois grupos distintos: “Eu tenho duas turmas de amigos que são definitivamente diferentes uns dos outros devido à sua educação, família, história e perspectiva do mundo em geral. Entretanto, meus amigos alemães e judeus se conhecem e se dão bem”.
Em relação ao tema Holocausto, a jornalista Heide Sobotka esclarece: “Para os jovens, esse tema não é mais algo que vai modelar completamente suas vidas. Claro que eles mantêm as lembranças dos acontecimentos, mas não é mais algo tão essencial como era para outras gerações”. Sobotka explica ainda que, com a morte das vítimas e dos opressores, a lacuna entre as gerações aumenta e os acontecimentos deixam de ter o impacto que tiveram na vida dos mais velhos. Arnold diz que, para ele e seus colegas, o Holocausto é algo um pouco mais distante do que para seu avô e sua mãe. “Lógico que estudamos isso nas escolas alemãs. Diria até que eles dão uma ênfase maior do que qualquer outro assunto em História, para se ter a certeza de que isso não será esquecido ou acontecerá de novo, mas ainda assim não é algo que minha geração viveu de perto, portanto sentimos uma distância cada vez maior em relação ao tópico.”
O jovem F.T. afirma que o Holocausto é uma parte de sua consciência, mas acredita que, com o passar do tempo, o evento vai ter um impacto menor e se tornar algo “longe” da realidade. “Acho que, para as novas gerações e as que ainda virão, o Holocausto será algo similar ao que a Inquisição ou outros eventos contra os judeus tiveram na minha geração”, compara.
Um estudo feito em 2010 pelo Fundo Pincus para Educação Judaica em Diáspora mostrou uma grande diferença em relação à memória do Holocausto entre judeus menores de 40 anos e maiores de 61 anos. Enquanto 60% dos mais velhos responderam que o Holocausto teve uma influência negativa na sua vivência na Alemanha, apenas 20% do grupo mais novo concordou com a afirmação. A mesma pesquisa ainda indica que 32% dos que têm menos de 40 anos estão extremamente satisfeitos com suas vidas na Alemanha, enquanto apenas 2,6% do grupo acima dos 61 afirmam o mesmo.
Segurança e futuro
Apesar de todo o esforço para trazer uma certa “normalidade” de volta à comunidade judaica, ainda se nota muita segurança ao redor de instituições judaicas como centros culturais, escolas e até mesmo as sinagogas. Arnold explica que, quando ele e sua mãe abriram o café onde trabalham atualmente, foram abordados pelas autoridades locais que lhes ofereceram segurança extra para o local, assim como eles fazem com outros estabelecimentos judaicos. Eles não aceitaram. “Não sinto medo e não queria ter guardas na frente do meu café.”
F. T. vê a questão da segurança de outra maneira. “Apesar de eu não ter medo de ser judeu aqui na Alemanha, compreendo a paranoia. Afinal, vamos ser realistas: existem ameaças hoje em dia como a do Hezbollah, em 1994, em Buenos Aires, ou a da Al-Qaeda em Mumbai, dois anos atrás. No final, você acaba se acostumando rapidamente com toda essa segurança em torno das instituições judaicas.” Brämmer conta que as medidas de segurança são precauções que o Estado toma tanto por medo de ataques terroristas por conta da questão palestina, como de atos de neonazistas. “Existem discussões para diminuir a proteção, pois eles poderiam viver tranquilamente sem elas. Entretanto, houve atentados em outros lugares do mundo e ninguém quer ser responsabilizado caso isso ocorra aqui.”
Quanto ao futuro das comunidades judaicas vivendo na Alemanha, Maksim é otimista, porém cauteloso. “Os judeus têm sido assimilados pela comunidade cada vez mais e isto é um bom sinal, uma vez que nós crescemos juntos. Eu acredito que os judeus devem se deixar ser parte desse grande povo, que é o alemão, entretanto a história nos ensinou a sempre ficarmos alerta e isso é o que continuaremos a fazer.”
Heide Sobotka explica que nos últimos 22 anos a infraestrutura destinada a preservar a cultura judaica tem melhorado muito. “Agora existem jardins de infância, escolas, centros juvenis. Há rabinos vindo para a Alemanha, sendo educados aqui. As perspectivas para o futuro raramente foram tão promissoras como as de hoje e a aceitação nunca foi tão boa. Entretanto, ainda temos problemas: a imigração já estagnou e os judeus estão envelhecendo cada vez mais. Em 2009, 171 crianças nasceram, enquanto 1.038 pessoas morreram. Além disso, muitos jovens não precisam mais das comunidades judaicas como um lugar seguro. Eles se encontram fora das comunidades. Ninguém sabe como as sociedades judaicas serão em vinte anos na Alemanha – é certamente um dos grandes tópicos debatidos nas comunidades”, finaliza.
Pedras obstáculos
Um bom exemplo relacionado à manutenção da memória pode ser encontrado nas ruas de centenas de cidades alemãs. São as chamadas “pedras obstáculos”, um projeto que foi criado em memória daqueles que perderam suas vidas nos campos de concentração. Trata-se de uma espécie de azulejo de latão fixado nas calçadas em frente aos locais onde viviam as vítimas da perseguição nazista. Neles há uma inscrição com o nome da pessoa que morava ali, data de nascimento, destino da sua deportação e data da morte.
* Publicado originalmente no site da Revista Fórum.