Aprendi ao longo de alguns textos sobre a Copa do Mundo de Futebol que o preço de questionar uma conquista nacional é o de ser acusado de torcer contra o Brasil.
Isso não é exclusivo do atual governo.
Desde a ditadura militar, com seu famoso slogan “ame-o ou deixe-o”, a tendência é inibir certas críticas, associando-as à falta de patriotismo. Neste caso, e em muitos outros, o patriotismo não é simplesmente um refúgio de canalhas, como na célebre citação. Ele faz parte de um processo complexo de acúmulo de poder e dinheiro, no qual um dos elementos sempre impulsiona o outro: mais dinheiro traz mais poder, que, por sua vez, traz mais dinheiro.
Da maneira como está sendo conduzida, a preparação para a Copa não é racional. Notícias de bastidores relatam a insatisfação da Fifa, que poderia em outubro cancelar a escolha do Brasil como sede. O que a Fifa parece querer é pior ainda do que se está fazendo por aqui. A entidade quer eliminar o meio ingresso para estudantes e idosos, algo que, correto ou não, representa direitos conquistados.
O governo enfatiza esse detalhe da disputa com a Fifa porque sabe que o deixa bem com a opinião pública.
Outros anéis já se foram, sem grandes protestos. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), denunciado pela Procuradoria- Geral da República, foi o primeiro grande passo para conformar a legislação brasileira ao desígnios dos que se querem aproveitar da Copa.
E o relator do projeto do novo Código Florestal no Senado, Luiz Henrique (PMDB-SC), afirmou que seria introduzida uma emenda no projeto permitindo desmatar para obras da Copa.
O Brasil tem pressa, disse ele.
Quando se trata de conformar uma legislação aos seus desígnios, o Brasil deles tem pressa.
Quando se trata de avançar com obras essenciais para a Copa, o Brasil deles é devagar. Aparentemente, são movimentos contraditórios, mas no fundo se complementam: mais pressa significa menos controle sobre os gastos.
Estou convencido de que muitos desses gastos são irracionais.
No capítulo dos estádios esportivos, tenho mencionado dois exemplos: o do Maracanã, no Rio, e o do Machadão, em Natal. Só para a reforma do Maracanã o governador Sérgio Cabral pretendia gastar quase R$ 1 bilhão. O Tribunal de Contas apertou o controle e conseguiu abater R$ 84 milhões. O governo do Rio, que esta semana contraiu um empréstimo de US$ 126,6 milhões com o Banco Interamericano, resolveu fazer marketing e reduziu mais R$80 milhões no custo do Maracanã.
O mecanismo foi sutil: isentar de ICMS o material de construção destinado à obra, construída pela empresa Delta, de Fernando Cavendish, amigo de Cabral.
Nem os fluminenses nem sua imprensa se deram conta, na plenitude, de que estavam sendo enganados: os custos são os mesmos, mas pagos de forma diferente.
Tudo foi feito em concordância com a legislação federal que também isenta estádios de alguns impostos. A conta da Copa ficará um pouco como as pessoas cujas fotos são processados no Photoshop e parecem ter 10kg a menos.
O caso do Machadão, em Natal, que se vai chamar Arena das Dunas, também é típico. O estádio será reconstruído para ampliar sua capacidade. Pesquisas sobre sua trajetória indicam que só lotou uma vez, durante a visita do papa João Paulo II. Suponhamos que a ampliação sirva aos jogos da Copa. Mas, e depois? Teríamos de esperar nova visita de um papa para encher o estádio outra vez.
A solução para os aeroportos também me parece irracional. O aumento do número de passageiros das linhas aéreas é constante no País. Como usem Copa, precisamos de novos aeroportos.
A solução apresentada: construir terminais provisórios.
Se há uma necessidade estratégica de crescimento, o arranjo provisório atrasaria a solução definitiva e drenaria parte dos seus recursos.
Serviria à Copa e aos torcedores, mas atrasaria o passo de novas levas de viajantes.
As famosas obras de mobilidade urbana não serão concluídas.
O empenho na construção do trem-bala parece maior do que a preocupação com as massas metropolitanas que, às vezes, passam quatro horas do dia se deslocando de casa para o trabalho e vice-versa. A solução para esse complexo problema já foi anunciada pela ministra Miriam Belchior: sai o legado, entra o feriado.
Nos dias de jogo, as cidades param e o Brasil arca com um imenso prejuízo, sentido na carne pelos trabalhadores autônomos.
Nunca se falou tanto em transparência quanto na época em que o Brasil foi escolhido para sediar a Copa e a Olimpíada. Políticos de vários horizontes formaram comissões, ONGs se posicionaram no front da vigilância e, no entanto, os dados não aparecem com toda a sua clareza. O empréstimo de US$ 126,6 milhões no exterior e a redução de custos no Maracanã com base em isenção de impostos são faces de um drama que escapa até aos grandes órgãos de comunicação do Rio, considerados os lucros que a Copa lhes trará.
Porém a vida continua no seu implacável ritmo. A insensatez joga em inúmeras posições, mas os governantes calculam que os prejuízos serão recompensados por uma vitória nacional no futebol.
Em caso de derrota e insatisfação, há sempre o recurso de mais um feriado para aplacar a fúria.
A proposta do Brasil é sediar a Copa do Mundo para projetar sua nova importância internacional.
Para essa tarefa estratégica a interface cosmopolita do País são os Ministérios do Esporte e do Turismo.
O primeiro é dirigido pelo Partido Comunista do Brasil, que há alguns anos era fascinado pela experiência da Albânia. O segundo é feudo do senador José Sarney e procura atender, prioritariamente, ao Maranhão, um belo Estado, porém mantido no atraso pelos seus dirigentes.
Os patriotas que me perdoem, mas não posso repetir o slogan do McDonald”s, amo muito tudo isso. E já vai muito longe o tempo em que o dilema, pela força da repressão, era amar ou deixar.
Nos tempos democráticos, é preciso demonstrar a racionalidade das ações do governo. E a Copa do Mundo de 2014 pode ser a amarga taça da improvisação e cobiça na qual bebem apenas políticos empresários.
* Fernando Paulo Nagle Gabeira é um escritor, jornalista e político brasileiro.
** Publicado originalmente no site EcoD.