Não há bem que nunca acabe, não há mal que sempre dure

Forças políticas do 'bem' e do 'mal' se utilizam da democracia para difundirem ideias para um novo mundo. Foto: Luiz Cruvinel/ Ag. Câmara

Em meu encontro com Marina Silva para tratarmos de seu movimento suprapartidário e com participação popular em prol de uma nova política, conversamos sobre muitos pontos para os quais convergimos. Também houve divergências, como o casamento civil entre homossexuais, mas nenhuma impediu ou impede nosso diálogo em favor dessa nova política.

Concordamos que uma força política jovem, descentralizada, quase alheia às organizações políticas tradicionais (partidos, sindicatos, centrais sindicais e entidades de representação profissional), “desloca-se da borda para o centro da esfera pública” (a expressão é de Marina Silva), alterando as paisagens política e social às quais estamos habituados. Essa força é preocupada com os desastres ambientais e com a sustentabilidade do planeta e se expressa, sobretudo, nas redes sociais, por meio das novas tecnologias da comunicação.

Concordamos que essa força política é “do bem”, para simplificar as coisas. Pelos poucos momentos em que nos permitiu vislumbrar sua face não muito nítida – e esta avaliação é apenas minha –, podemos dizer que essa face é configurada sobretudo pelas ações dos ambientalistas e dos ativistas pelos direitos dos homossexuais. Ou seja, são esses dois movimentos – por seu objetivo de ampliar os direitos, estender a cidadania, revisar costumes e reinterpretar tradições – que vêm servindo de ponto de articulação para os outros (os movimentos feminista, negro, de povos indígenas, de imigrantes, de refugiados, pela reforma agrária, descolonização, democratização das comunicações, contra os mercados financeiros, pelo perdão da dívida dos países do terceiro mundo e etc).

E quando falamos em “movimentos” não estamos nos referindo necessariamente às instituições que pretendem representá-los, mas que na verdade encontram-se engessadas por sua relação de subserviência a governos que lhes garantem migalhas e cargos de gestores públicos. Referimo-nos aos ativistas ainda animados pela independência, indignação, conhecimento e capacidade de agregar por meio das redes. Marina e eu concordamos que essa força política dá nova direção à corrente da história e reencarna as ideias de justiça e liberdade que já tomaram corpo em outros momentos de crise vividos pela humanidade.

Lembrei-me na hora do filme V de Vingança, de James McTeigue (com roteiro escrito pelos irmãos Washowski, responsáveis pela trilogia Matrix) e daquilo que diz seu protagonista, um revolucionário amante das liberdades civis: algumas ideias são a prova de bala porque não têm corpo, se morre um corpo que as hospedava, elas (re)encarnam em outros diferentes corpos e momentos, imortais que são.

E disse à Marina: se é verdade que as ideias de justiça e liberdade que mobilizaram as revoluções francesa e americana e, décadas mais tarde, materializaram-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em heróis como Luther King, Gandhi e Mandela, animam a força política “do bem” que se desloca “da borda para o centro”, também não é mentira que uma força política “do mal”, animada pelas ideias que resultaram nas tiranias medievais e, séculos depois, no fascismo e no nazismo, também se desloca, em sentido contrário, da borda para o centro.

Não preciso recorrer às expressões dessa força maligna em outras partes do mundo. Bastam-me os exemplos locais: a multiplicação de gangues juvenis de inspiração fascista em São Paulo, atacando homossexuais, negros e migrantes; a proliferação de sites e blogs disseminando racismo, antissemitismo, homofobia, intolerância contra religiões minoritárias e misoginia; a predominância de fundamentalistas nas igrejas cristãs (católica e neopentecostais) e em sua representação no Congresso Nacional; endurecimento das polícias e aumento do efetivo policial como solução para a violência urbana.

Do choque dessas duas forças, que reencenam os arquétipos de bem e mal, luz e trevas, sim e não, inextrincáveis como as faces de uma moeda, nascerá o novo mundo, no qual, ou estaremos numa nova etapa da democracia e do Bem-Estar Social caso triunfe a força política do bem, ou entraremos de vez numa nova Idade Media (pronuncie-se “mídia”, como em inglês), em que totalitarismo, obscurantismo e tecnologia de ponta estarão de braços dados caso a força do mal triunfe. A intenção de Marina Silva ao nos convocar para uma conversa é fortalecer as fileiras dos que acreditam num mundo mais justo, sem miséria, com liberdades civis garantidas, convivência harmoniosa dos diferentes e sustentável. Atendi ao chamado!

* Jean Wyllys é jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT.

** Publicado originalmente na coluna do autor, no site da revista Carta Capital.