A era das grandes responsabilidades

Manter a qualidade de vida para mais de 9 bilhões de habitantes vai exigir da humanidade uma visão mais pragmática de suas responsabilidades diante do planeta.

Ignacy Sachs.

Tudo indica que antes da Rio+20, programada para meados de 2012, a Comissão Estratigráfica Internacional vai oficialmente proclamar que desde o início da revolução industrial no século XVII, entramos numa nova era geológica – o antropoceno – caracterizada por um forte impacto das atividades humanas sobre o porvir da Nave Espacial Terra. Não que sejamos “mestres da natureza”, como o pensava Descartes. O recente tsunami que assolou as costas do Japão, nos arredores de Fukushima, nos lembrou a nossa impotência frente eventos naturais deste porte: três enormes ondas de quase 40m de altura, avançando a 300Km/h e entrando 10Km no interior das terras, destruindo portos, aldeias, derrubando casas, carregando barcos e carros, danificando uma central nuclear, acabando com a safra de arroz desta importante província agrícola do Japão e com 80 mil empregos.

Necessitamos de uma postura pró-ativa, avaliando com realismo a nossa capacidade de atuar, valendo-se da qualidade única à espécie humana representada pela nossa capacidade de imaginar o futuro. Em outras palavras, devemos aprender a difícil profissão de “geonautas”, neologismo proposto por Erik Orsenna. Assim, 2012 vai passar à história como uma censura duplamente importante na história imediata e na “longue durée”, ou seja, na longa coevolução da nossa espécie com a Nave Espacial Terra. Provavelmente, historiadores futuros deixarão de lado a dicotomia “antes e depois de Cristo” e falarão da época anterior ao antropoceno, e o antropoceno, salientando que o reconhecimento tardio da nossa entrada do antropoceno foi precedido de uma forte aceleração da história imediata durante o breve século XX que, segundo Eric Hobsbawm, começou com a primeira guerra mundial em 1914 e terminou com a queda do muro de Berlim em 1989.

Os geonautas nunca devem perder de vista a absoluta necessidade de enfrentar simultaneamente as questões de sustentabilidade ambiental e de justiça social. Ao sacrificarmos no altar da sustentabilidade ambiental o postulado da justiça social, corremos o risco de aprofundar ainda mais as distância abissal que já separam as minorias abastadas ocupando os camarotes de luxo no convés da Nave Espacial Terra das massas que se disputam o triste privilégio de labuta nos seus sótãos. Por outro lado, a busca da justiça social não nos deve levar a comportamentos destrutivos do meio ambiente ao ponto de provocar mudanças climáticas deletérias, pondo em risco a própria sobrevivência a termo de nossa espécie.

Mais do que nunca, como geonautas, devemos elaborar e pôr em prática estratégias de desenvolvimento ambientalmente sustentável e socialmente includente, dando-lhes a forma de planos plurianuais. No que diz respeito às mudanças climáticas, o nosso poder é limitado, por isso não devemos nos omitir de reduzir ao máximo as mudanças de origem antropogênica.
Por contraste, as nossas margens de liberdade para diminuir a dívida social acumulada são muito maiores, conquanto saibamos fazer bom uso dos conhecimentos já acumulados e dos progressos futuros da ciência, combinando-o com investimentos que ampliarão o aparelho produtivo e com uma organização social capaz de assegurar o trabalho decente para todos.

Para avançar na direção de um desenvolvimento socialmente includente e ambientalmente sustentável, vamos precisar de paradigmas energéticos baseados em três princípios: sobriedade, eficiência e substituição das energias fósseis, responsáveis pela emissão de gazes de efeito estufa; por energias renováveis. No que diz respeito ao leque das energias renováveis, devemos explorar cuidadosamente o potencial da energia solar, eólica, maremotriz e, no caso do Brasil, das bioenergia de origem terrestre e aquática, esta última produzida a partir de algas. Isto nos leva a uma questão fundamental: até que ponto a utilização das bioenergias compete com a produção dos alimentos necessários, hoje para quase 7 bilhões e, em meados deste século, para 9 milhões de seres humanos, muitos dos quais por enquanto vão dormir de barriga vazia.

Sem perder de vista a prioridade que, por razões sociais, deve ser dada à produção de alimentos para todos aqueles que continuam passando fome ou são subalimentados, dispomos de conhecimentos e temos condições para que uma parcela importante de biocombustível se origine nos resíduos da produção alimentar, transformando dessa maneira os alimentos e os biocombustíveis em coproduto. Em todo caso, tanto a produção de alimentos como a produção de biocombustíveis estão intimamente ligadas as progressos da revolução verde e da revolução azul, sem esquecer o potencial econômico representado pelo adensamento em espécies arbóreas úteis ao homem das florestas mantidas em pé por razões ambientais.

A primeira revolução verde, associada com o nome de Norma Borlaug, privilegiou as produções de alimentos com sementes selecionadas, grandes quantidades de adubos e água abundante, condições essas não acessíveis a uma grande parte dos agricultores dos países emergentes. Um passo importante para a frente foi dado pela agrônoma indiana, M. S. Swaminathan, ao postular uma “revolução sempre verde” (evergreen revolution), voltada primordialmente às possibilidades e aos interesses dos pequenos agricultores.

Em paralelo, devemos avançar na conceitualização de uma revolução azul, abrangendo as águas litorâneas dos mares e as águas interiores (rios, lagos, lagoas, açudes, etc.), substituindo gradualmente a piscicultura à pesca (ou seja à  caça ao peixe), sem esquecer as algas o seu potencial energético. O objetivo presente a todas essas iniciativas é a geração do maior número passível de oportunidades de trabalho decente.

Um tema da maior importância é a implantação de unidades de produção intensiva horti-pisci-arbórea em e a redor de açudes, igarapés, lagos, ao longo dos rios e nas extensas áreas protegidas pelo recife no litoral marítimo. Uma unidade de meio hectare pode atender o consumo de 200 brasileiros. Obviamente, podemos trabalhar com unidades de produção maiores de um ou mais hectares. Não deveríamos ser limitados, pelo menos no Brasil, pela falta de espaço para implantação dessas unidades. Um uso tão intensivo dos solos se justifica pela necessidade de manter em pé por razões ambientais e sociais grandes extensões de floresta. Por outro lado, elas geram um potencial apreciável de oportunidades de trabalho decente (uma a duas famílias de dois adultos por unidade).

A título preliminar, generalizando os dados disponíveis e adequando-os a uma população mundial de 9 bilhões de habitantes, para assegurar o consumo de 50Kg por habitante/ano de peixe, necessitaríamos de 4,5 milhões de hectares de açudes. Supondo que o consumo anual de hortaliças requer 10m² por pessoa/ano, precisaríamos de 9 milhões de hectares de hortas. Ao crescimento ainda 9 milhões de pomares e plantações arbóreas, chegaríamos a um total de 22,5 milhões de hectares, ou seja, menos metade da superfície da França, isto pata atender uma parte significativa do consumo da população mundial!

À primeira vista pode parecer fácil. Sem ceder a esta visão otimista, nos limitaremos a dizer: Yes, we can (ou talvez Yes, we should), sim esta meta deveria estar ao nosso alcance, enquanto nos mobilizamos para tanto e saibamos organizar uma cooperação internacional eficiente. Esta deverá se pautar por uma nova geografia, ou seja privilegiar as relações entre países que enfrentam o mesmo desafio de aproveitar melhor os recursos renováveis dos diferentes biomas.

Nesta visão, o Brasil e os países amazônicos têm uma responsabilidade especial no que diz respeito à cooperação entre países detentores de grande superfície de floresta tropical úmida nos três continentes, América Latina, África e Ásia. Podemos repetir o mesmo raciocínio para os demais biomas  – o semiárido, as savanas, as regiões temperadas, etc. – sem esquecer o caso especial das zonas litorâneas dos mares e oceanos, tema no qual o Brasil aparece outra vez como um protagonista de primeiro plano.

Concluindo, ao finalizarmos a nova Cúpula da Terra podemos ainda esperar uma aterrissagem segura se soubermos respeitar o princípio da responsabilidade e organizar uma cooperação internacional efetiva, capaz de reequilibrar o balanço das forças em favor dos países emergentes. O Brasil e a Índia têm uma responsabilidade histórica como locomotivas potenciais deste bloco. Não há razão para que a entrada no antropoceno freie o desenvolvimento da nossa espécie, bem ao contrário, conquanto os geonautas se entendam com respeito ao rumo que a Nave Espacial Terra deve tomar.

* Ignacy Sachs é economista e professor da  École des Hautes Études en Sciences Sociales, da Paris.