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Entre desafios e oportunidades

A inovação a serviço da produção de alimentos no México. Foto:Mauricio Ramos/IPS

Cidade do México, México, 17/10/2011 – Embora ameace agravar a fome e a pobreza, a presente crise alimentar, que – se estima – chegou para ficar vários anos, implica diversificar a agricultura, adaptá-la à mudança climática e aumentar a produtividade, afirma a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O informe “Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e no Caribe. Altos Preços dos Alimentos: Oportunidades e Riscos”, apresentado no dia 14 pela FAO, alerta que os valores de mercado dos alimentos já atingiram seu mais alto nível histórico e mostram grande volatilidade.

Esses dois fatores “colocam em risco os avanços” na luta contra a fome e a desnutrição infantil na região, diz o documento, divulgado por ocasião da celebração, ontem, do Dia Internacional da Alimentação, e, hoje, do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Para os países fortes produtores de alimentos, como Argentina, Brasil, México e Uruguai, a conjuntura pode ampliar o valor de suas exportações, enquanto os fornecedores de matéria-prima, como Bolívia, Chile e Peru, podem compensar as compras caras com os preços elevados de petróleo, cobre ou ouro. Porém, nações como as centro-americanas sofrem a carestia.

Na Guatemala, onde metade de seus 14 milhões de habitantes vive em condições de pobreza e 17% na indigência, segundo agências da ONU, a situação alimentar ainda é muito precária. Rony Palacios, da não governamental Rede Nacional pela Defesa da Segurança e Soberania Alimentar na Guatemala, disse à IPS que as medidas do governo para enfrentar a insegurança alimentar são “ineficazes e não respondem a problemas estruturais”. Explicou que “são assinados tratados comerciais que permitem a compra subvencionada de arroz, milho, trigo e outros produtos, de cuja produção éramos autossuficientes, enquanto agora dependemos de sua importação, o que provoca uma perda de nossa soberania alimentar”.

A primeira onda de subida de preços ocorreu em 2008, com um forte impacto sobre os segmentos mais pobres da região. A partir de junho de 2010, os preços voltaram a subir e, em agosto deste ano, o novo índice foi “130% maior do que o registrado, na média, entre 2000 e 2005”, segundo a FAO. Na América Latina e no Caribe, a fome afetou no ano passado 52,5 milhões de pessoas, equivalente a 9% de sua população total, 600 mil a menos do que em 2009. A redução corresponde às políticas implantadas pelos governos para abater o flagelo, que, no entanto, apresenta resultados díspares na região.

O Brasil é reconhecido como vanguardista em segurança alimentar, graças ao programa Fome Zero, implantado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que tem continuidade com sua sucessora, Dilma Rousseff, com o nome de “Brasil sem Miséria”, voltado para a população mais vulnerável. “Os progressos se devem a importantes estratégias públicas que converteram esforços da sociedade em políticas de Estado, não apenas de governos”, afirmou à IPS o diretor do não governamental Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Francisco Menezes. “O Brasil partiu de um nível muito preocupante, no qual prevalecia a fome” há duas décadas, observou Menezes, que presidiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar.

Por sua vez, Dolores Rojas, coordenadora de Campanhas da Oxfam México, afirmou que na região “se começa a falar da necessidade de haver mudanças nos produtos semeados. “Contudo, não existe um planejamento e, menos ainda, uma coordenação com os produtores”, lamentou. Em 2010, o Congresso brasileiro mudou a Constituição para declarar a alimentação e a nutrição adequada um direito humano. O parlamento mexicano fez o mesmo em maio deste ano para garantir o direito à alimentação, mas essa mudança só entrou em vigor no dia 13 deste mês, ao ser publicado no Diário Oficial da Federação.

Na Guatemala, desde 2005, existe a lei de Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que criou um conselho nacional e a respectiva secretaria, embora sem reforma constitucional e sem resultados perceptíveis para a população. “Temos ferramentas legais de grande conteúdo, mas, lamentavelmente, permanecem como letra morta”, disse Luis Monterroso, da unidade de direito à alimentação da Procuradoria de Direitos Humanos da Guatemala.

Segundo a FAO, a região não apresenta problemas de disponibilidade de alimentos, cujas previsões para este ano são, “em geral, favoráveis, com exceção dos cereais que podem sofrer uma leve queda”. O problema são os preços. As cotações dos alimentos ficaram 36% mais altas em agosto passado, comparadas com agosto de 2010. Em particular os preços do trigo e do milho aumentaram, respectivamente, 62% e 104%, só no último ano. Os altos valores dos alimentos, no entanto, representam uma oportunidade de melhor renda para a agricultura familiar, destacou a FAO.

“Para isso, são necessárias políticas que aumentem sua produtividade e melhorem suas condições de inserção nos mercados, insumos e financiamento”, propôs esta agência da ONU. A agricultura familiar é fonte da maior parte da ocupação dos trabalhadores rurais brasileiros. No censo agropecuário de 2006, foi registrada a existência de 16,6 milhões de trabalhadores rurais, que representam 18,9% da população ocupada no Brasil. Desse total, 84,4% trabalhava em pequenas propriedades de menos de 200 hectares.

No México, cerca de cinco milhões de pessoas dependem dessa modalidade agrícola, com área média de seis hectares e com equivalências a 39% da produção agropecuária total e 70% dos postos de trabalho no setor, de acordo com a FAO. O governo do presidente Felipe Calderón administra três programas de apoio agrícola, sem benefícios claros para os pequenos produtores. A agricultura familiar ganha muito importância, segundo Monterroso, porque “serve para o autoconsumo, principalmente de grãos básicos como milho e feijão, embora suas reservas durem apenas entre cinco e sete meses. Se o Estado desse apoio a estes camponeses, poderiam aumentar sua capacidade de produção e alimentação, mas continua sendo apoiado o modelo de exportação”, lamentou.

A FAO sugeriu medidas como a geração de mecanismos de governança mundial e regional da segurança alimentar e nutricional, a transformação de padrões de produção e consumo, maior transparência nos mercados internacionais, dinamização dos mercados locais e adaptação do setor agropecuário à mudança climática. “Não é prioridade a adaptação à mudança climática nem o apoio à agricultura familiar. A atenção do governo está voltada para a agricultura em grande escala e para as importações como política, o que, com a crise, nos deixa em situação de vulnerabilidade”, disse Dolores Rojas.

No Brasil, estão pendentes “novas questões a serem trabalhadas, sendo as mais visíveis a contaminação de alimentos (o país é o maior consumidor mundial de agrotóxicos) e a volatilidade dos preços, pelo fato de serem tratados como mercadorias, sujeitas à especulação em bolsas de mercado futuro que têm grande impacto nos preços”, segundo Menezes. Envolverde/IPS

* Colaborações de Danilo Valladares (Guatemala) e Mario Osava (Rio de Janeiro).