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Ódio divide a Líbia pós-Gadafi

Cairo, Egito, 27/10/2011 – Acabado o regime de Muammar Gadafi, que governou a Líbia com mão de ferro por quatro décadas, o ódio racial vem à tona. Os líbios agora têm como objetivo construir uma democracia viável, elaborar nova Constituição e organizar eleições parlamentares e presidenciais. Mas os líderes do Conselho Nacional de Transição (CNT) ainda lutam para conseguir uma voz comum.

Essa dificuldade foi reconhecida pelo próprio primeiro-ministro interino, Mahmoud Jibril, que, ao anunciar no dia 22 sua renúncia, disse que a unidade nacional seria o principal desafio de agora em diante. “Tirar as armas das ruas, estabelecer a lei e a ordem e unir as facções díspares do CNT são as principais prioridades após a morte de Gadafi”, disse em uma declaração à imprensa após a reunião regional do Fórum Econômico Mundial, realizada na Jordânia.

Com mais de 140 tribos e clãs, a Líbia é considerada uma das nações mais fragmentadas no mundo árabe. Apesar da modernização, o tribalismo continua forte em um país agora inundado de armas. Quase 40 milícias independentes surgiram durante a rebelião e continuam ativas. Há dúvidas se o CNT tem a capacidade de governar sobre os vários grupos, muitos dos quais com interesses que se chocam e contas do passado.

Para os líbios do sul, este cenário desalentador já se converteu em realidade. Tawergha, localidade que fica 64 quilômetros ao sul de Misurata, na costa ocidental do Golfo de Sirte, era lar de aproximadamente 20 mil pessoas. Agora se converteu em um povoado fantasma. Segundo alguns líbios, Tawergha recebeu esse nome porque sua população tinha a pele escura como os membros da etnia berebere “tuaregue”.

Os tuaregues, que habitam as fronteiras com Chade, Níger e Argélia eram, historicamente nômades que controlavam as rotas de comércio através do Deserto do Saara e tinham a reputação de serem ladrões. Na década de 1970, Gadafi reuniu os tuaregues e outros recrutas africanos para formar seu batalhão de elite conhecido como Al Asmar, “os negros”, em árabe.

Sob supervisão do próprio Gadafi, estas milícias, em geral, participavam de expedições em países vizinhos. No começo da revolta na Líbia, em fevereiro deste ano, muitos tuaregues foram enviados para reprimir os manifestantes. Como consequência, o ódio racial aumentou e, em meio a informações não confirmadas de que mercenários de outros países eram contratados por Gadafi para sufocar o levante popular, nasceu outro inimigo comum: os africanos de raça negra.

Aos olhos dos habitantes de Misurata, os tuaregues são responsáveis por alguns dos piores abusos contra os direitos humanos durante o cerco de Gadafi a essa cidade em março e abril. No dia 15 de agosto, no que organizações de direitos humanos consideram ataques de represália, forças rebeldes sob o nome comum de “Brigada de Purga de Escravos de Pele Negra” teriam detido e transferido centenas de tuaregues, enquanto outros desapareceram.

“Se voltarmos a Tawergha ficaremos à mercê dos rebeles de Misurata”, disse à Anistia Internacional uma mulher que vive em uma barraca com seu marido e os cinco filhos. “Quando os rebeldes entraram em nossa cidade, em meados de agosto, e a bombardearam, fugimos com a roupa do corpo. Não sei o que aconteceu com nossas casas e nossos pertences. Agora estou aqui neste acampamento, meu filho está doente e tenho muito medo de ir ao hospital da cidade. Não sei o que vai acontecer”, afirmou a mulher.

Também estão entre o fogo cruzado da vingança os emigrantes econômicos, refugiados e aqueles da África subsaariana que procuram asilo. Muitos procuram refúgio nos vizinhos Egito e Tunísia. “Temendo por suas vidas, meus pais, que são da cidade de Al Fasher, em Darfur, fugiram para Trípoli em 1998. Eu nunca havia morado fora da Líbia antes de começar o conflito. Meu pai trabalhou como cozinheiro e minha mãe era trabalhadora do lar. Antes de fugir, eu estava no terceiro ano da faculdade de medicina, disse à IPS Eiman, de 20 anos.

“Infelizmente, o levante na Líbia teve um desenlace sangrento porque as pessoas não respeitaram mais a lei e se começou a violar mulheres, fazer reféns e matar as pessoas. Durante dois meses, minha família permaneceu presa em casa”, acrescentou Eiman. “Todos os homens negros pegos nas ruas eram acusados de serem mercenários e mortos. Nossa mãe cuidava de conseguir comida, mas passávamos fome muitos dias”, contou.

No mês passado, o jornal The Wall Street Journal citou Jibril afirmando: “Sobre Tawergha, minha opinião é que ninguém tem o direito de interferir neste assunto a não ser a população de Misurata. Este assunto não pode ser resolvido com teorias e livros sobre reconciliação nacional na África do Sul, Irlanda e Europa oriental”. Os apelos de grupos de direitos humanos para que sejam protegidos os habitantes de raça negra da Líbia parecem ter caído no vazio, e isto parece ser um mau sinal do que está por vir. Envolverde/IPS