Um grupo de paulistanos com mais de 60 anos descobre o prazer de subir ao palco. Foto: Fábio Fujita

Tarde de domingo. O auditório do Clube Alto dos Pinheiros, em São Paulo, apresenta duas peças, uma na sequência da outra: Paixão e Eternidade e Ver São Muitos, ambas criações dos próprios grupos que as encenam. Mas não se trata de trupes teatrais quaisquer: seus “atores” são em sua maioria simpáticos vovôs e vovós. Momentos antes da apresentação ao público, o diretor Cauê Mattos comanda um ensaio final. Uma das atrizes, Vitalina Alves de Lima, 63 anos, reclama de dores no joelho. Sofrera algumas quedas em casa, ao escorregar no piso de ardósia. “Acho que com a bengala fico mais confiante.” Cauê avaliza. Então todos se dão as mãos e fazem uns aos outros a saudação clássica do teatro: “Merda!”. Em cena, alguns deitam no palco, outros dançam. Estão leves e felizes. Uma octogenária hesita em parte do texto, o que imprime mais simpatia do que constrangimento. No fim, aplausos efusivos. A arte, definitivamente, os tirara do ócio.

O projeto intitulado Só com Experiência, que propõe oficina de teatro para quem tem mais de 60 anos, integra o cronograma do Estação Ciência – departamento da Universidade de São Paulo (USP), que tem por objetivo decifrar o universo científico a partir de atividades lúdicas e recreativas. Em 2000, com carta-branca da direção para pensar em algo que relacionasse o estudo do corpo com elementos artísticos, o coordenador de eventos Cauê Mattos criara um núcleo de artes cênicas. “O Estação Ciência era, até então, um espaço muito voltado aos jovens”, recorda Mattos, que acreditava existir uma demanda reprimida de atividades que envolvessem também os idosos. Em 2007, a primeira oficina teatral para a terceira idade foi montada com um grupo de oito alunos. “Na segunda semana, eles já estavam convidando outros. O curso começou em agosto e, em dezembro, tínhamos 30 inscritos.”

A peça Ver São Muitos integra o projeto Só com Experiência da Estação Ciência, para "maiores" de 60 anos. Foto: Fábio Fujita

Ao longo desses quatro anos, cerca de 160 idosos passaram pelas oficinas. Atualmente, são 65, divididos em três turmas. As montagens apresentadas ao público por duas turmas encerraram a segunda de três etapas da metodologia proposta por Mattos. Na primeira, explora-se o que o diretor chama de “consciência corporal”, proposta de um estudo da própria anatomia e suas potencialidades quanto à gestualidade, ao movimento e ao equilíbrio. É só na segunda etapa que os alunos passam a trabalhar em um texto a ser montado – sempre uma criação coletiva inédita. “A ideia é que eles se sintam efetivamente autores, criadores”, explica o diretor. Então, na terceira etapa, propõe-se a adaptação de um texto consagrado. Neste ano, a escolha recaiu sobre a comédia O Noviço, de Martins Pena, texto de 1845 sobre um homem que se casa por interesse com uma endinheirada viúva.

Acompanhei um dia dos ensaios em uma quarta-feira no fim de setembro. Dos 23 alunos que integram o grupo que montará O Noviço (a apresentação ao público está prevista para a primeira semana de dezembro), apenas 11 estavam presentes. Uma delas chegou a dez minutos do início do ensaio. Com passos miúdos e escorando-se nas paredes, Vielda Brugnera foi logo saudada pelos colegas: “A caçulinha chegou!” Vielda é, na verdade, a mais idosa entre todos os participantes, tem 91 anos. “Ela é apaixonada pelo Cauê”, dedurou uma colega. Integrante do projeto desde o início, Vielda participara das duas montagens clássicas anteriores: Sonhos de uma Noite de Verão, de Shakespeare, e O Pagador de Promessas, de Dias Gomes.

Desta vez, por conta da dificuldade de locomoção, Vielda tem preferido acompanhar de fora – como assistente de direção – a subir ao palco. O professor, por sua vez, não aceita a opção de Vielda, a quem elogia a presença cênica e o timbre de voz. Ainda alimenta a esperança de escalá-la em cadeira de rodas, ou em uma cena inicial em que ela apareça sentada. “Deixá-la só como observadora passa a ideia de que está findando o processo. E para os outros talvez fique a sensação de que, chegando a essa idade, vão agir da mesma forma.” No palco, o ensaio começou com os alunos descalços, fazendo exercícios que exploram o desembaraço: caretas, assovios, uivos. Vielda, atenta, acompanhava os colegas da plateia, na primeira fileira. Logo, me confidencia: “Esse Cauê é um negócio!”

No camarim, os atores preparam a maquiagem antes do espetáculo. Foto: Fábio Fujita

A montagem de O Noviço quase foi suspensa em razão de Tarcilio Bertola, 74 anos, a princípio escalado para fazer o protagonista Ambrósio. Vítima de AVC em agosto, Bertola perdeu os movimentos do lado esquerdo do corpo. Mattos explica que o cancelamento da montagem soaria, para os demais, como uma destruição de sonhos. “Eles são como crianças. A ideia de montar cria uma expectativa muito grande, porque já comentam com família, filhos, netos.” A saída foi trocar os personagens – e Mauricio Tarandach, 79 anos, ex-tenente-coronel, pai de três filhos e avô de três netos, assumiu o papel. No dia seguinte ao ensaio, visitei Bertola no hospital. Lúcido e sem comprometimento da fala, recitou de cabeça trechos inteiros do personagem. “Se o Mauricio não puder fazer o Ambrósio, é só me chamar que estou pronto”, assegurou. Sinais de boa disposição não faltam. “Vivo brigando com a minha esposa. Se a gente briga, é porque estou bem.”

Poucos dos atores haviam tido alguma experiência anterior no teatro. Segundo o diretor, muitos que chegaram à oficina estavam abandonados – alguns até com depressão. “Mas o Cauê não nos trata como anciãos”, observa Tarandach. A sensação de se sentir novamente produtivo é imensurável. Nanci Vitor Santos, 63 anos, que atuou em Paixão e Eternidade, define: “Melhor a gente fazer do que ficar em casa assistindo à tevê, vendo os outros”.

* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.