Menos de 1% dos programas curriculares dos cursos de pedagogia e licenciatura abordam o tema "avaliação"

Cursos de pedagogia e licenciaturas não contemplam conhecimentos técnicos e reflexivos sobre as provas, o que inibe o protagonismo docente.

O aprimoramento dos cursos de pedagogia e das licenciaturas sempre surge relacionado aos desafios mais importantes a serem enfrentados pela educação brasileira. No caso da avaliação, não é diferente. Um estudo amplo feito pela pesquisadora Bernadete Gatti, da Fundação Carlos Chagas (FCC), sobre os programas curriculares de cursos de pedagogia e licenciatura mostrou que disciplinas que tratam do assunto são raras: menos de 1% delas contemplam o tema “avaliação”. Pior: nem nos programas de educação continuada, que Bernadete estuda desde 1996, a preparação do professor para a avaliação de seus alunos é abordada.

“Quando o tema surge, é tratado de forma abstrata, o que não significa de maneira teórica. Se fosse teórica, pelo menos, seria bom”, diz a pesquisadora. Segundo ela, o que se vê são visões que partem do princípio de avaliação como um processo nocivo, sem se discutir profundamente o assunto. Gisela Wajskop, doutora em sociologia e diretora do Instituto Singularidades, especializado em formação de docentes, segue a mesma linha: o tema é trabalhado de maneira discursiva nas universidades. “É um devir ideológico baseado nos discursos da avaliação formativa e do fazer democrático e participativo, mas sem instrumentos que possam permitir mudança de rotas no ensino”, diz.

Bernadete lembra que essa carência de disciplinas da área avaliatiava está relacionada com um movimento de condenação à formação técnica, iniciado por pensadores do campo educacional a partir de meados da década de 70. “Naquela época, qualquer formação que cheirasse a tecnicismo e a instrumentalização foi condenada, mas jogaram fora o bebê junto com a água”, diz. O problema, na visão da pesquisadora, é que avaliação em sala de aula não é um processo independente do ensino – são práticas interligadas. Assim, se o professor tem dificuldades em avaliar, isso se reflete na qualidade da aprendizagem.

Carências

Como resultado da falta de relevância com que o tema é tratado, os professores tendem a reproduzir as práticas pelas quais passaram quando alunos da Educação Básica e dos cursos de formação de professores. Nas faculdades, por exemplo, o estudo de Bernadete mostrou que praticamente não há processos avaliativos individuais. Predomina o trabalho em grupo, seguido das provas. “Não se oferecem experiências por meio das quais os alunos compreendam a avaliação como instrumento de aprendizagem”, defende. “O resultado é que se formam sem que se saiba exatamente o que ele aprendeu”, diagnostica.

O que acontece nos cursos de formação é que os docentes aprendem de forma fragmentada, sem compreender as implicações do que estão fazendo, já que toda a avaliação está atrelada a uma visão do que seja educar. Para a pesquisadora da FCC, a gravidade é tamanha que o professor não tem preparo nem para a avaliação continuada e formativa, nem para as provas de caráter mais conclusivo. E essa ausência extrapola o curso universitário – ela começa na própria literatura sobre o tema, que é parca. “E assim, o docente vai aprendendo como pode”, diz.

Mais entraves

Se não aconteceu na universidade, o preparo técnico de centenas de milhares de professores que estão nas escolas deveria ser priorizado nos cursos de formação continuada. Isso poderia ser feito, por exemplo, com a contribuição das empresas terceirizadas que hoje elaboram e aplicam os instrumentos de avaliação. Na visão de Ocimar Alavarse, pesquisador da Faculdade de Educação da USP (Feusp), o docente precisaria ser capacitado para que atue mais ativamente, tanto na avaliação interna como na externa. Isso tornaria o processo avaliativo mais legítimo, além de impedir que o professor seja simplesmente responsabilizado. “Da forma como está hoje, ele é destituído de seu papel por uma entidade externa que vem e diz o que ele deveria ter feito”, pondera.

Mas a falta de preparo técnico não é o principal dilema. “Em 100 horas de formação, resolveríamos o problema, se fosse apenas esse”, diz Alavarse. Há uma dimensão essencialmente política envolvida no debate, que se refere às finalidades da avaliação. Para ele, da forma como existem hoje, as provas internas se situam em um contexto de uma escola seletiva, e se resumem a uma prática profissional para encontrar os bons alunos. “Não que isso seja intrinsecamente errado, mas é uma posição, e precisa ser debatida com clareza. Ela só será mudada com convencimento, e não por decreto”, diz. No seu entender, a discussão aberta do tema permitiria o estabelecimento de critérios, o que é essencial. “Quer se decida escolher os melhores ou promover todos, é preciso fazê-lo com justiça.”

Alavarse também defende que o processo avaliativo só mudará se outros mecanismos da escola forem compreendidos – como o poder conferido ao professor na atribuição das notas. “No interior de uma escola seletiva, há a distribuição das credenciais da ascensão social. Quem as atribui é o professor”, lembra. Não se trata de mudar o discurso ou as técnicas, mas a própria postura do educador. Apenas assim a avaliação deixaria de ser um processo que coloca seus protagonistas em campos adversários para se tornar uma ferramenta de colaboração e construção da aprendizagem.

Soluções

O Instituto Singularidades adota duas modalidades de preparação de docentes no que se refere à avaliação. Para que tenham um repertório ampliado, os alunos são avaliados em processo, por meio de diferentes instrumentos, como portfólios e questionários. Além disso, passam por um curso específico de avaliação de aprendizagem, que foca nas diversas formas de avaliação nas diferentes disciplinas. Para a pesquisadora Maura Moraes Bolfer, que já dirigiu licenciaturas em institutos superiores de educação, trata-se de promover uma mudança cultural.

Assim como os alunos nas escolas, frequentemente os professores desenvolvem uma perspectiva nada favorável sobre os processos avaliativos. “Há, na cultura escolar, a ideia de que avaliação é punitiva, e não é vista como parte de um processo de transformação”, analisa. “É preciso que nossos professores experimentem a avaliação como uma boa experiência, inclusive associada à consciência das aprendizagens, para que eles a coloquem a seu serviço e não o contrário”, concorda Gisela, do Instituto Singularidades.

Na opinião de Bernadete Gatti, os professores devem conhecer outras formas e recursos de avaliação, especialmente as que tenham o caráter de continuidade, aplicadas em seguida ao trabalho determinado. Ela defende, por exemplo, o que se chama na literatura da área de avaliação-minuto, ou seja, pequenas avaliações ou trabalhos subsequentes, que ajudem o professor a acompanhar mais de perto o desenvolvimento dos alunos. Do mesmo modo, pedir trabalhos rápidos, mas frequentes, permite ao professor avaliar o andamento do processo e dá oportunidade para discutir com os alunos os avanços e as dificuldades. “As provas tradicionais são importantes quando se fecha um ciclo de aprendizagem”, explica.

Mudança de paradigma

Nesse sentido, é preciso que os professores tenham a prática (e não só o conceito) de avaliação formativa mais clara e presente. “Os docentes têm o discurso de uma avaliação humana e compreensiva mas suas práticas são as mais tradicionais”, lembra Maura. A aferição formativa está associada simultaneamente às metas e aos conteúdos, e remete à postura do professor. “Ela serve para o professor checar as posturas dos alunos, o desempenho nas atividades em função de metas de aprendizagem, e as crianças não se sentem ameaçadas, mas sim com a possibilidade de melhorar”, diz. Para ela, é importante que haja equilíbrio, nem se desconsiderando a teoria, tampouco ignorando as práticas. “A fundamentação teórica é importante, sempre atrelada à questão prática relacionada ao estudos dos diferentes instrumentos de verificação da aprendizagem, seja na elaboração, seja na análise desses instrumentos”, conclui.

* Publicado originalmente no site da Revista Educação.