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Washington castiga Unesco pela entrada da Palestina

O chanceler da Autoridade Nacional Palestina Rayid al-Maliki na sessão da Unesco. Foto: Unesco/Dou Matar.

Washington, Estados Unidos, 1/11/2011 – O governo dos Estados Unidos anunciou a imediata suspensão de suas obrigações financeiras com a Unesco apenas horas após esta agência da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovar por esmagadora maioria a entrada da Palestina como membro pleno.

A administração de Barack Obama cortou ontem os fundos em cumprimento a uma legislação da década de 1990 que proíbe as contribuições para a ONU caso alguma de suas agências conceda o status de Estado-membro à Palestina, disse a porta-voz do Departamento de Estado, Victoria Nuland. Na próxima semana Washington entregaria US$ 60 milhões de sua cota à Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), acrescentou.

“A votação de hoje (ontem) foi lamentável e prematura e mina nosso objetivo comum de uma paz duradoura, justa e ampla no Oriente Médio”, afirmou Nuland. Washington ainda apoia a criação de um Estado palestino, mas somente se isso for conseguido “mediante negociações diretas” com Israel. Essas ações estão congeladas há mais de um ano devido à negativa israelense de suspender a instalação de colônias nos territórios ocupados, tal como exigiu o presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mohamoud Abbas.

Nuland se referiu ao apoio de seu governo à Unesco, que “serve a uma ampla gama de nossos interesses nacionais em educação, ciência, cultura e comunicações”, e afirmou que os Estados Unidos “continuarão membro e manterão compromisso com essa agência”. Porém, Washington pode perder seu direito a voto na Unesco se deixar de pagar suas contribuições por dois anos, reconheceu a porta-voz. Também preocupa que a votação de ontem provoque um efeito cascata de pronunciamentos semelhantes em outras entidades da ONU, que obrigariam os Estados Unidos a congelar igualmente seus pagamentos, alertou.

Apesar das intensas pressões dos diplomatas de Washington, delegações de 107 países votaram em Paris, onde fica a sede da Unesco, a favor da entrada da Palestina como membro pleno, enquanto 14 votaram contra, 52 se abstiveram e 21 não compareceram à sessão. Para conseguir seu ingresso, a Palestina necessitava dos votos de dois terços da Conferência Geral da Unesco.

Aos votos contrários de Israel e Estados Unidos somaram-se os de Alemanha, Austrália, Canadá, Holanda, Lituânia, Panamá, República Checa, Suécia e um punhado de nações insulares do Pacífico Sul. A União Europeia, que não conseguiu unificar seus 27 membros em uma política comum sobre o Oriente Médio, se apresentou muito dividida. Dinamarca, Grã-Bretanha e meia dúzia de países da Europa central se abstiveram, enquanto Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Eslovênia, Finlândia, França, Grécia e Irlanda votaram a favor da Palestina.

China e Rússia (dois dos cinco membros com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU) também decidiram a favor dos palestinos, bem como o restante do bloco Brics – Brasil, Índia e África do Sul –, todos os países da Liga Árabe e outras potências emergentes, como Indonésia, Nigéria e Turquia.

Em setembro, Abbas apresentou ao Conselho de Segurança pedido de ingresso da Palestina como Estado soberano ao sistema da ONU, na qualidade de presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que representa diplomaticamente esse povo cujos territórios estão ocupados há décadas por Israel. Os Estados Unidos ameaçaram exercer seu direito de veto se esse pedido – sob estudo técnico de especialistas da ONU – for apresentado para votação no Conselho.

A cota dos Estados Unidos é de US$ 80 milhões por ano, ou 22% do orçamento da Unesco, por isso a decisão de Washington pode prejudicar seriamente as atividades da agência. Porém, a incorporação à Unesco costuma se traduzir em entrada automática em outras agências do sistema, como Organização Mundial da Propriedade Industrial (Ompi), Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento e Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial, em virtude de acordos de reciprocidade que existem entre elas.

De fato, altos funcionários do Departamento de Estado e do escritório norte-americano de marcas e patentes se reuniram ontem com representantes de grandes companhias e associações empresariais dos Estados Unidos para revisarem as consequências da decisão em suas relações com a Ompi, cujo trabalho fornece grande parte do fundamento legal para proteger os direitos de propriedade intelectual em todo o mundo.

“Só no ano passado, dezenas de grandes norte-americanas apresentaram casos perante a Ompi: a Associação Norte-Americana do Automóvel, Apple, The North Face, Costco e Facebook, para citar algumas”, disse o ex-senador Timothy Wirth, presidente da Fundação das Nações Unidas. “Se a Palestina entrar na Ompi, os Estados Unidos terão que se retirar, limitando sua capacidade de aplicar políticas a favor de seus interesses econômicos e da criação de empregos domésticos”, acrescentou.

Diante da margem da votação na Unesco, parece provável que os palestinos serão admitidos em outras agências, como a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) que, entre outras funções, inspeciona instalações nucleares no Irã, na Coreia do Norte e em outros países signatários do Tratado de Não Proliferação Nuclear e que é de grande importância para a segurança norte-americana, segundo Wirth e outros analistas. “Se Washington deixar de pagar suas cotas à AIEA, perderemos nosso voto no conselho executivo. Seria como perder nosso lugar na mesa durante a próxima crise nuclear”, afirmou Wirth em uma coluna publicada no site Huffington Post.

As leis que vedam o financiamento a agências da ONU que reconhecem a Palestina como Estado datam do começo da década de 1990, quando ainda era inaceitável para os políticos norte-americanos apoiar a chamada “solução de dois Estados” para o conflito palestino-israelense. Essa opção foi explicitamente apoiada apenas por um presidente, em 2002, George W. Bush. Ao contrário da maior parte da legislação deste tipo, as duas leis vigentes sobre o assunto não cedem ao presidente a faculdade de ignorá-las por “interesse nacional” ou por “razões de segurança nacional”.

Nuland afirmou que o governo consultaria o parlamento sobre mecanismos para continuar apoiando a Unesco e outras agências que também venham a admitir a Palestina. Sua reunião de ontem com poderosas organizações empresariais indica que tentaria somar o esforço ao lobby do setor privado. Uma forma de consegui-lo é reformar as leis para incluir a dispensa presidencial.

No entanto, no clima pré-eleitoral que se vive em Washington, as possibilidades de a Câmara de Representantes, dominada pelo opositor Partido Republicano, concordar com essa reforma são “baixas e inexistentes”, segundo Lara Friedman, diretora de política e relações de governo da Americans for Peace Now, um grupo sionista e pacifista. “A visão majoritária do Congresso é que a solicitação palestina de se legitimar perante a ONU equivale a uma nova forma de terrorismo contra Israel, por isso, se a lei atual não existisse, esta legislatura a inventaria”, disse Friedman.

De fato, a presidente do Comitê de Assuntos Exteriores da câmara baixa, a direitista de origem cubana Ileana Ros-Lehtinen, apresentou seu próprio projeto que não só proíbe financiar qualquer agência da ONU que reconheça a Palestina como também elimina a contribuição à ANP e à Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina, caso Abbas insista em sua solicitação.

Segundo a Americans for Peace Now, a votação na Unesco “deve servir de alerta para Israel, o governo Obama e o Congresso norte-americano”. Segundo o grupo, “O statu quo (Israel continua suas políticas odiosas contra a solução de dois Estados e o governo Obama não pode ou não quer exercer uma liderança convincente que torne crível sua política de paz) somente levará a maior isolamento e marginalização de Israel e dos Estados Unidos na comunidade internacional”. Envolverde/IPS