Participantes relatam dificuldades enfrentadas por bibliotecas e estudantes, em evento promovido pelo Ministério Público Federal de São Paulo.
Audiência pública realizada no auditório do Ministério Público Federal da 3º Região, em São Paulo, colocou, de um lado, defensores de mudanças na Lei 9.610/98, ampliando o acesso aos bens culturais, e de outro aqueles que acham que ela deve ser mantida. O evento, que aconteceu no último dia 26, foi organizado pela procuradora da República Ana Cristina Bandeira Lins. Ela acredita que a lei, “sob um olhar crítico, dificulta e, no limite, restringe o acesso ao patrimônio cultural”, por isso destacou a importância de fomentar o debate.
Na opinião de Guilherme Varella, advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a lei atual fere diretamente os direitos dos consumidores garantidos pela Constituição. De acordo com a lei copiar é crime, por isso, o cidadão se sente amedrontado, quando precisa de um material, seja para uma aula na faculdade ou uma pesquisa escolar. Segundo ele, a lei, do jeito que está, ao não permitir o uso educacional e científico, lesa um direito constitucional, que é o direito à cultura e à educação.
O professor Pablo Ortellado, coordenador do Grupo de Pesquisas em Políticas Públicas para Acesso à Informação (Gpopai/USP), apresentou dados de um trabalho realizado pelo grupo na universidade. Segundo Ortellado, 80% dos estudantes consumiriam sua renda familiar inteira se comprassem apenas o que os professores indicam como bibliografia básica para o curso. Outro número relevante é que 30% da base bibliográfica está indisponível, ou seja, as editoras não colocam mais aquela obra à venda, o que faz com que a única saída seja as fotocopiadoras.
Em relação a elas, o professor afirmou que dois terços não fazem cópia alguma de livros, alegando que já sofreram ações repressivas da polícia e da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR), mesmo a lei permitindo a reprodução de parte de um livro. A interpretação dessa parte da lei também é alvo de controvérsia, pois não há um número exato do que se pode ou não copiar.
Outro problema apontado por Ortellado é que os livros muitas vezes são subprodutos de pesquisas do autor enquanto ele é docente. Ortellado mostra que 92% das pesquisas são financiadas pelo governo, ou seja, os cidadãos estão pagando por algo que depois não vão poder usar por causa da lei. Em relação às editoras, a pesquisa também apontou que os royalties recebidos com direitos autorais representam apenas 1% do salário do autor como professor e que, na maioria das vezes, ele vem na forma de exemplares do seu próprio livro.
Bibliotecas
Pedro Puntoni, diretor da Brasiliana da USP, contou que a biblioteca abriga uma doação de todo o acervo que pertencia ao bibliófilo José Mindlin. A família decidiu doar tudo na condição de que as obras fossem preservadas e abertas ao público. Com livros raríssimos, a biblioteca iniciou então um árduo trabalho para digitalizar tudo. Mas, exceto as obras de domínio público, eles não poderiam fazer isso sem o consenso ou do autor ou de seus herdeiros. Puntoni contou o caso de um exemplar raro, datilografado, de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, um livro enorme e extremamente frágil. Fora do domínio público, ele não pode ser digitalizado e quando o puderem fazer, existe o grande risco da obra não existir mais devido à ação do tempo. O simples ato de folhear essa obra já causa grande desgaste, por isso ela está guardada a sete chaves, sem que ninguém tenha acesso à ela. Vale lembrar que uma obra só entra em domínio público 71 anos após a morte de seu autor.
Uma das mudanças defendidas por Puntoni são para que obras como essa possam ser preservadas. Ele lembrou que existem 184 países que fazem parte do World Intellectual Property Organization (WIPO) [entidade em defesa da propriedade intelectual], dos quais apenas 21, entre eles o Brasil, não fazem exceção aos direitos autorais para arquivo e bibliotecas. Em toda a Europa, só San Marino tem lei semelhante à brasileira.
Outro lado
Na audiência, estiveram presentes o presidente do Comitê Nacional de Cultura e Direitos Autorais, Roberto Mello, e o representante da ABDR, Dalizio Barros. Ambos defenderam a lei do direito autoral como é hoje.
Para Mello, é impróprio uma entidade de defesa do consumidor debater o tema. Segundo ele, é “importante parar com essa demagogia de acesso à cultura” pois “é o Estado quem tem o dever de dar acesso à ela, não o autor”. Criticou Gilberto Gil, a licença Creative Commons e ainda afirmou que “educou seus filhos, dizendo que sempre os ensinou a não pegar o que é dos outros”.
Já Barros disse que a ABDR busca a apreensão de materiais proibidos, fotocopiados para a venda, e criticou universidades que não investem na compra de livros, deixando suas bibliotecas insuficientes para o uso dos estudantes. Finalizou dizendo que a internet veio de maneira avassaladora para o mercado editorial e que é preciso um projeto regulatório para seu uso.
* Publicado originalmente no site da Revista Fórum.