A saída para alguns impasses atuais não está tanto na mudança do modelo econômico, mas na transformação de padrões culturais.
É consenso que vivemos atualmente uma crise do capitalismo e de seus valores. Então, é preciso entender melhor como funciona esse sistema, suas vantagens, suas desvantagens e sua história, a fim de buscar possíveis saídas para os problemas surgidos.
O sistema capitalista nasce em oposição ao antigo sistema aristocrático no qual as pessoas eram diferenciadas por seu nascimento. No sistema antigo, poderia-se nascer nobre, rico e cheio de privilégios ou nascer plebeu e sem direitos. Dificilmente essa situação mudaria ao longo de sua vida ou na de seus descendentes.
O sistema capitalista surgiu em oposição a esse velho modelo e trouxe à tona duas noções admiráveis: o trabalho e o mérito.
Teoricamente, no sistema capitalista todos nascem com iguais condições de serem bem sucedidos. Aquele que trabalhar e produzir mais pode subir na escala social e se tornar um vencedor. O mérito é o que diferencia quem sobe e quem desce. “Vence quem trabalha duro” é um dos pilares do pensamento capitalista.
Se isso já foi verdade algum dia, hoje não é mais, e este é o principal problema da crise. O sistema se transformou, e hoje o capital conseguiu se desvincular justamente dos dois formidáveis conceitos que o sustentavam, o trabalho e o mérito.
O problema da crise pode ser resumido em um simples lema: “faça o seu dinheiro trabalhar por você”. Na verdade, esse princípio retira o trabalho da equação do capital. Só os seres humanos podem trabalhar e produzir coisas ou ideias; o dinheiro não pode trabalhar nem produzir nada. Quando você faz o dinheiro “trabalhar”, na verdade está subtraindo da equação elementos como o trabalho, o esforço, a produção e o mérito. O dinheiro não se encontra mais no final da equação (trabalho + mérito = dinheiro), ele toma toda a equação (dinheiro = + dinheiro).
No entanto, isso se mostra falso, pois, como o dinheiro não é capaz de produzir nada sozinho, ele só se reproduz num sistema que tem por base uma única noção: a especulação. Criou-se um mercado bastante complexo no qual dívidas e promessas de lucro são vendidas e revendidas num ritmo alucinante, visando apenas à multiplicação do dinheiro através da multiplicação do risco envolvido. Assim, chegamos a um ponto em que 40% do PIB da maior economia do mundo é representado por um mercado baseado em nada, a não ser na pura especulação. As dívidas são roladas e especuladas com o simples objetivo de multiplicar o dinheiro, sem ter por lastro nenhum aumento de trabalho ou de produção. Mesmo um leigo em economia pode perceber que um sistema que não produz nada não pode se sustentar em longo prazo. Um dia, descobre-se que as fortunas foram construídas baseadas apenas em ar e então as bolhas estouram.
A questão central, portanto, não é a ganância desmedida dos envolvidos, mas o fato de o capital ter se desvinculado totalmente de princípios que lhe davam legitimidade e o sustentavam, como trabalho e produção. No novo sistema, o dinheiro gera mais dinheiro. Mas, como não há aumento da produção ou do trabalho, trata-se de ganho apenas virtual.
Atualmente, o dinheiro parece ser o único valor inquestionável da sociedade, seu único padrão. A melhor medida para dizer se uma sociedade vai bem ou vai mal é o desenvolvimento econômico. Basta que um país tenha dinheiro, não entram em cena questões como a felicidade da população, o respeito ao meio ambiente, os valores democráticos, os direitos humanos ou a possibilidade do desenvolvimento humano dos seus indivíduos.
Observa-se que o que vale para os países parece valer também para as pessoas. Não importa se o sujeito é mau caráter ou não, o importante para a sociedade atual é apenas o valor de sua conta bancária. Nosso único “valor” parece ser o financeiro.
Assim como as pessoas, os governos foram desviados do que é importante e passaram a ser guiados apenas pelo mercado financeiro. A lógica que realmente importa ao governo é a do crescimento econômico. Tal fato gerou uma relação de subserviência entre o poder político e o poder econômico. Desse modo, a democracia deixou de ser o governo do povo, para o povo e pelo povo e passou a ser o governo do dinheiro, para o dinheiro e pelo dinheiro.
Com o sistema financeiro ganhando autonomia e se distanciando das noções de trabalho e mérito, ele se distanciou também dos demais valores humanos. Eis o problema: o sistema se tornou desumano; a nossa sociedade se tornou desumana. Deixamos de nos importar com coisas que são relevantes para o ser humano e só conseguimos enxergar um valor: o monetário.
Surgem as indagações: Como podemos mudar isso? Quais as nossas alternativas?
Alguns afirmam que será preciso mudar o sistema econômico. Eu defendo a ideia de que é preciso mudar a nossa cultura.
Quanto a esse ponto, é preciso que saibamos muito bem o que queremos. A sociedade de hoje é voltada para o dinheiro. Para o que se voltará a cultura que pretendemos construir amanhã?
Há uma boa alternativa que já começa a surgir nas ruas como um novo lema: “as pessoas importam”. Mas o que significa voltar-se em direção às pessoas, ou melhor, como podemos estabelecer uma cultura que esteja direcionada de maneira integral para o ser humano? Como construir uma sociedade onde o mérito esteja associado à capacidade real de um ser humano atingir todo o seu potencial e não apenas à capacidade de gerar lucro ou não? Como uma cultura pode permitir e estimular seus indivíduos a fim de que estes atinjam todo seu potencial como ser humano?
Atenas e Florença
Outros, antes de nós, se mostraram verdadeiramente capazes de responder a essas perguntas. Em outros tempos, existiram sociedades nas quais floresceram, de maneira bastante fértil, grandes seres humanos e grandes ideias. Se formos capazes de observar a especificidade dessas sociedades, talvez possamos entender quais valores eram então priorizados e como isso estimulou o desenvolvimento dos seres humanos. Se formos capazes de entender o tipo de solo mais fértil para favorecer o desenvolvimento integral da cultura humana, poderemos estimular esse crescimento entre nós.
No entorno da cidade de Atenas no século V antes de Cristo, surgiram conceitos-chave que permeiam a nossa cultura até a atualidade, tais como a democracia, a filosofia, a retórica, a experimentação científica, a competição esportiva e o espetáculo teatral. Praticamente conviveram nessa cidade, de cerca de 40.000 habitantes à época, nomes como Sócrates, Platão, Aristóteles, Hipocrates, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Pitágoras.
Como é possível que uma pequena cidade no decorrer de um ou dois séculos tenha gerado conhecimento suficiente para que seja referência para praticamente todas as áreas da nossa cultura de hoje?
Na cultura Grega, o homem era a medida de todas as coisas. Os ideais de superação e excelência e a busca do eterno aperfeiçoamento físico e intelectual constituíam a base dessa sociedade. A educação integral e cultural dos cidadãos foi desenvolvida e incentivada de uma forma inédita. Nessa pequena cidade, os homens livres eram tidos como iguais e discutiam aberta e cotidianamente temas como política, filosofia, ciência e artes. Do mesmo modo como hoje, em nossa sociedade baseada em entretenimento, discutimos sobre futebol ou sobre o último reality show. Essa parece ser a principal diferença entre a nossa sociedade e a dos gregos antigos. Enquanto em Atenas a cultura estava focada no aprimoramento integral do ser humano, a nossa sociedade é centrada no consumo e no entretenimento.
Cerca de 2000 anos depois de Atenas, outra sociedade se destaca pelo surgimento de grandes nomes e grandes ideias: Florença, cidade italiana do século XV, onde ocorre o ponto de partida para a grande revolução cultural que será posteriormente denominada Renascimento, e que deu fim a séculos de obscurantismo e superstições.
Novamente, no espaço de poucas gerações e num mesmo local aparecem grandes nomes como Botticelli, Brunelleschi, Michelangelo, Leonardo da Vinci e Galileu Galilei. Além da retomada dos valores clássicos e do humanismo, existe um novo conceito que tomou força nesta sociedade: a magnificência.
Magnificência consiste na capacidade de as pessoas gastarem dinheiro com bens que são importantes para a sociedade, ou seja, financiando a cultura, as artes e a ciência. Ao contrário de hoje, quando valorizamos o acúmulo de dinheiro, os florentinos se preocupavam com a forma utilizada para seu gasto, gerando uma prática conhecida como mecenato. A família Médici baseava suas ações nessa prática; e, não por acaso, todos os nomes citados, de artistas e/ou homens da ciência, eram envolvidos diretamente com membros dessa família. Sua fortuna, ao se tornar fonte de financiamento para as artes e a cultura, gerou um conhecimento no campo artístico e científico que impulsionou toda a nossa civilização.
É interessante notar que tanto Atenas no século V a.C. quanto Florença no século XV eram sociedades de grande êxito comercial e de relativa fartura econômica. O que as difere das outras sociedades é o fato de que, para os florentinos e atenienses, o dinheiro não se tornou o único e último objetivo. Para tais sociedades, o dinheiro era um meio para alcançar o verdadeiro fim da sociedade: o desenvolvimento integral do homem.
Humanismo, tal como o nome indica, significa simplesmente pensar no ser humano como o fator mais importante da sociedade; ou, como bradam hoje os povos do mundo, pensar nas pessoas primeiro lugar.
Para isso acontecer, a sociedade deve dar maior significância aos valores humanos, isto é, deve-se dar importância à cultura, às artes, à literatura, à ciência, incentivando tanto a produção quanto o consumo de conhecimento e de cultura.
Cultura e capital
Priorizar a produção e o consumo de cultura mostra-se um processo muito mais vantajoso do que o que corresponde ao modelo atual de produção e consumo de bens materiais. O modelo econômico baseado acúmulo de bens gera um imenso desgaste ambiental sobre o planeta, pois para produzir bens materiais cada vez mais recursos naturais são necessários.
A produção de cultura e de conhecimento mostra-se focada sobretudo nos recursos humanos, no ser humano. Ao contrário dos recursos naturais, os recursos humanos não se esgotam e podem até mesmo ser aprimorados ao produzir cultura. Quanto mais cultura e conhecimento produzimos, mais cultura e conhecimento consumiremos. Nesse cenário ideal, o dinheiro e a energia da sociedade são direcionados diretamente de uma pessoa a outra, pois todos podem se envolver no processo de produção de cultura, gerando um círculo virtuoso.
Outro sério problema da lógica de produção baseada nas coisas é que ela gera um pensamento egoísta. Os recursos são limitados, e por isso, na divisão de bens da sociedade, para um indivíduo ter mais, outro necessariamente deverá ter menos. A lógica consiste em: “quanto mais eu tenho, menos você tem”. Trata-se de um jogo chamado perde-ganha, no qual para que eu ganhe é preciso que alguém perca.
Por outro lado, no modelo baseado na cultura, quanto mais eu acumular cultura e conhecimento, mais terei a oferecer ao próximo. No caso da produção de cultura, pode-se afirmar que acontece um milagre da multiplicação: quanto mais eu dividir a minha cultura com outros, mais a cultura se multiplicará.
A lógica de uma sociedade baseada na cultura favorece a discussão e constrói uma sociedade mais participativa. Dessa forma, desestimula o egoísmo que, na sociedade atual, parece atuar como um vírus, tornando os indivíduos cada vez mais mesquinhos e interessados apenas nos próprios problemas
A mudança do capital para o cultural só depende de nós, pois para uma cultura mudar é preciso que cada um mude. É preciso (re)pensar e valorizar a cultura e o conhecimento humano. Deixar de priorizar o capital material e começar a perceber o valor do capital humano que existe à volta. É preciso voltar a prestar atenção às pessoas.
Hoje, há todos os recursos para que isso seja possível, pois com o desenvolvimento da tecnologia o conhecimento e a cultura humana estão cada vez mais acessíveis. Na história da humanidade, em nenhum outro momento foi tão fácil produzir e compartilhar cultura e conhecimento. Porém, é preciso ter cuidado: se não ficarmos atentos para o curso da história, poderemos nos perder no mar de irrelevâncias que existe à volta e deixar passar a chance de tornar o nosso tempo luminoso, tal qual Atenas ou Florença um dia foram.
Que a crise configura uma oportunidade é uma frase batida. Então que a crise mundial seja uma oportunidade, não no sentido apenas de ser apenas uma janela de novos negócios, mas também uma razão para revermos valores e repensar a sociedade.
* Rafael Azzi é doutorando em Filosofia na PUC-RJ.
** Publicado originalmente no site Outras Palavras.