A literatura brasileira pede passagem

Um dos assuntos em evidência durante a recente Feira do Livro de Frankfurt foi a preocupação de editores e autoridades governamentais com a necessidade de abrir espaço para a literatura brasileira no exterior. Maravilha! Mas agora, que está todo mundo de volta à realidade de nosso mercado editorial, que tal dedicar alguma atenção também à necessidade de abrir espaço para a literatura brasileira aqui mesmo, entre o Oiapoque e o Chuí? É um tema que certamente será discutido no Congresso Brasileiro de Escritores, promovido pela União Brasileira de Escritores (UBE), que será realizado em Ribeirão Preto de 12 a 15 de novembro.

Literatura brasileira vende pouco, muito pouco, não apenas mundo afora, como lamentam grandes publishers patrícios, mas aqui mesmo, onde o big business editorial torra centenas de milhares de dólares no pagamento de advance para adquirir os direitos de um best-seller estrangeiro; aqui mesmo, onde é impossível encontrar romances nacionais em listas de mais vendidos. É a lógica do mercado, diriam os fundamentalistas da relação custo-benefício, aqueles para quem a indústria editorial trabalha com um produto “como qualquer outro” e quem não entende isso é um desprezível “conteudista”. São esses adoradores do lucro a qualquer custo que decidem hoje o que o grande negócio do livro publica ou deixa de publicar. São eles que não prestam a menor atenção a quem faz literatura aqui, no Brasil, mas estão empenhadíssimos em vender literatura brasileira lá fora. Uma maneira patriótica de garantir um troco extra.

Um falso silogismo

Os escritores brasileiros – refiro-me a quem faz literatura entendida como “a articulação livre dos sentimentos e pensamentos dos seres humanos, transcendendo essencialmente a utilidade prática”, na definição contida em brilhante texto de Gao Xingjian, Nobel de Literatura de 2000, publicado no suplemento “Sabático” deste jornal (8/8) –, os autores que se dedicam a investigar e interpretar a alma do povo brasileiro e a contribuir com sua arte para a nossa formação e o nosso enriquecimento cultural, esses escritores são relegados a um papel absolutamente secundário no mercado editorial brasileiro. Literatura adulta, incluindo as obras traduzidas, é responsável por pouco mais de 5% do total de vendas de livros no país, segundo pesquisa da Fipe feita periodicamente para as entidades livreiras.

Pode-se argumentar que livros que se enquadram na categoria “literatura adulta” – e aí se incluem todos os grandes clássicos da literatura universal – vendem pouco em qualquer lugar do mundo. É uma verdade muito relativa, que deve ser considerada à luz de um fenômeno universal relativamente recente: o predomínio da razão de mercado também na indústria editorial. Fenômeno que se manifesta de maneira mais perversa ainda em países culturalmente frágeis, como é o nosso caso.

Ensina a teoria literária que para se configurar plenamente como sistema articulado, na expressão de Antonio Candido, a literatura depende da interação dinâmica de três elementos: autor, obra e público. Em outras palavras, não existe literatura sem leitor. Quem faz a mediação física entre o autor e o leitor, por intermédio da obra, é a intervenção conjunta editora-livraria. Mas tanto uma quanto a outra tendem a ignorar a obra literária porque prevalece no mercado editorial um falso silogismo: o que não vende bem não se publica; literatura brasileira não vende bem; logo, literatura brasileira não se publica.

Produto essencial

É falsa a premissa maior de que livro que não vende bem não pode ser publicado. Ela traduz apenas a ganância de quem acha que livro só serve para fazer dinheiro. E é falaciosa a premissa menor, a de que literatura brasileira não vende. Não vende, na verdade, na medida em que a ganância do mercado desvia para promessas mais atraentes e imediatas de lucro investimentos editoriais que poderiam, pelo menos em parte, ser destinados a ampliar o mercado da literatura. Porque a função principal do editor é exatamente esta (e vale, é claro, para tudo, não apenas para literatura): prospectar bons conteúdos e depois contar com os marqueteiros para resolver o problema de como transformá-los em livros vendáveis. Os marqueteiros existem exatamente para isso, essa é a importante e difícil atividade-meio que lhes cabe, não a de decidir o que deve ou não ser publicado.

É mais comum do que se imagina uma grande editora torrar mais de US$ 100 mil na aquisição dos direitos de publicação de best-sellers estrangeiros. No mercado internacional é conhecida a voracidade com que editores brasileiros disputam entre si qualquer título que tenha passagem pelas listas de mais vendidos do jornal The New York Times. Esse título no qual se investe, logo de saída, um mínimo de cerca de R$ 170 mil de adiantamento e, logo depois, o custo de uma primeira tiragem de 20 mil, 30 mil exemplares vai exigir ainda pesadas despesas de propaganda e divulgação comercial, além de extremamente dispendiosos acordos com as livrarias para garantir uma primeira venda ou consignação que satisfaça a necessidade de uma boa exposição de pilhas do livro. Às vezes dá certo.

É assim que funciona a produção de best-sellers. É assim que as grandes editoras comerciais fazem dinheiro. É a lógica do mercado do livro impresso e seria ingênuo imaginar que algo possa mudar, até onde a vista alcança. Mas essa realidade demonstra claramente o seguinte: dinheiro não falta. O que falta é a vontade de investir também em conteúdos que enriqueçam qualitativamente o acervo bibliográfico nacional. Por exemplo, abrindo espaço para a literatura brasileira. Uma reivindicação justa, considerando que o negócio do livro é isento de impostos a partir do pressuposto de que trabalha com um produto diferenciado essencial para a nossa formação cultural.

* A. P. Quartim de Moraes é jornalista e editor.

** Publicado originalmente pelo jornal O Estado de São Paulo, de 24/10/2011, e retirado do site Observatório da Imprensa.