Como uma tragédia aérea fez com que a imprensa chilena tirasse o movimento dos estudantes das manchetes. Mas eles não entregaram os pontos.
Parecia que a solução para o conflito estudantil chileno tinha caído do céu. A frase pode soar como uma piada de mau gosto, o mesmo tipo de humor utilizado pelos grandes meios de imprensa do Chile, que se valeram de um acidente aéreo para atender ao principal interesse do debilitado governo de Sebastián Piñera: expulsar os estudantes das manchetes. Foi preciso muita ajuda das redes sociais e uma aposta arriscada de Camila Vallejo, uma das líderes do movimento, para evitar um inusitado fim da maior batalha já travada contra o neoliberalismo chileno.
Após mais de cem dias de paralisação das universidades e escolas de ensino médio, quando finalmente o Executivo chileno cedeu e aceitou reunir-se formalmente com Camila Vallejo e os demais líderes estudantis, o país viu, pela primeira vez, o noticiário ser invadido por outro fato: na tarde de 2 de setembro, um avião da Força Aérea Chilena desapareceu próximo ao arquipélago de Juan Fernandez, com 21 passageiros – entre os quais, um grupo que trabalhava em prol da reconstrução da ilha após o maremoto de 2010, e uma equipe do canal estatal de televisão, liderada por Felipe Camiroaga, um dos apresentadores mais queridos do país.
Curiosamente, o acidente se deu justo um dia antes do aguardado encontro entre Piñera e Vallejo, no Palácio La Moneda, que os estudantes queriam que fosse televisado. Ademais, horas antes do desaparecimento do avião, a polícia militarizada chilena anunciava a renúncia do general Eduardo Gordon, motivada por vários escândalos, entre os quais estava o das primeiras vítimas fatais da crise educacional chilena – uma semana antes, os adolescentes Manuel Gutiérrez e Mario Parraguez foram baleados e faleceram devido a disparos que, comprovou-se posteriormente, foram realizados por policiais.
Quando Piñera vivia o pior momento de um presidente chileno desde o fim da ditadura de Pinochet, com sua popularidade abaixo dos 30% (25% segundo o CEP, principal instituto do país), com sua polícia tendo sido responsável por duas mortes civis e uma disputa de três meses contra um movimento estudantil com apoio popular acima dos 75%, quando teria um encontro chave dali a poucas horas – no qual ele não parecia estar disposto a ceder –, naquele momento, a Televisión Nacional de Chile (TVN), o canal estatal que perdeu uma equipe jornalística no acidente foi o primeiro a abandonar totalmente sua programação habitual para cobrir exclusivamente as buscas do avião, e se dedicaria a isso por mais de uma semana. O mesmo fizeram os canais concorrentes e os demais meios tradicionais.
Em questão de horas, o pesadelo de Piñera desapareceu de todos os veículos de mídia. E mais, o próprio presidente surgiu anunciando, com o mesmo mau gosto da frase que iniciou este texto, que ia encontrar os possíveis sobreviventes no mesmo estilo do resgate aos 33 mineiros, no ano passado.
O presidente chileno manteve o encontro com os estudantes para o dia seguinte, o que garantiu que a intransigência do governo em não ceder às reivindicações da Confederación de Estudiantes de Chile (Confech) não tivesse maior transcendência em uma mídia que também ignorava o início do processo dos policiais que teriam atirado e causado a morte de dois civis, um deles menor de idade. Todas as lentes estavam centradas nas buscas dos restos e dos corpos. O governo sabia bem disso, e como aproveitou! O próprio Piñera, que por três meses, desde o início da crise educacional, havia sido figura rara mesmo nos anúncios do governo, passou a fazer aparições diárias e com pronunciamentos. Os programas de fofocas fizeram longos especiais para lamentar a morte do apresentador Felipe Camiroaga (cuja popularidade se assemelhava a de Luciano Huck no Brasil), nos quais também participaram figuras ministeriais.
O oportunismo governamental tampouco perdeu a chance de emplacar projetos impopulares em outras áreas. No caso mais polêmico, a Comissão de Avaliação Ambiental do governo chileno aprovou o projeto Hidro Aysén – que pretende construir uma usina hidrelétrica na Patagônia chilena – durante o luto oficial decretado por Piñera por causa da tragédia. Hidro Aysén, a versão chilena de Belo Monte, havia gerado, em maio, os primeiros protestos multitudinários do país no ano, que serviram de incubadores do movimento estudantil, que se iniciou no final daquele mês.
O movimento “sumiu”
Como num passe de mágica, o movimento estudantil se transformou em assunto sem importância para os grandes meios de comunicação. As multidões que marchavam pedindo um novo modelo educacional foram substituídas nos espaços midiáticos pelos grupos de seguidores de Camiroaga que choravam sua trágica morte em frente ao prédio do canal TVN.
A mudança tão brusca e inesperada levou a Confech a um cenário inusitado, transitou do apogeu ao seu desafio mais complexo em menos de cinco dias e sem ter exigido do governo um mínimo esforço para esse novo panorama. Enquanto a imprensa exagerava na cobertura das consequências do acidente aéreo, os estudantes tratavam de manter o movimento aceso, apesar dos obstáculos de comunicação.
As redes sociais foram acionadas desde o primeiro momento. As assembleias estudantis realizadas após a reunião com o presidente, transmitidas por twitcam e por diversos blogues, faziam parte da resistência. Os principais líderes do movimento resistiram à tentação de ecoar algumas teorias conspiratórias, divulgadas por alguns blogueiros e em grupos do Facebook, que defendiam a tese de que a tragédia havia sido uma ação realizada pelo governo para tirar o movimento estudantil do noticiário. Mas as marchas agendadas para as semanas posteriores ao acidente e muitos dos outros eventos ligados ao movimento estudantil, foram sendo adiados enquanto se esperava que a imprensa diminuísse o espaço dedicado àquele tema e voltasse a dar maior repercussão aos outros acontecimentos.
Mas o retorno da imprensa à pauta contingencial trouxe certa dose de cinismo e uma ênfase ao perigoso momento que vivia a Confech: falou-se dos quase dez dias sem novidades no cenário da crise educacional como sendo um enfraquecimento do movimento estudantil, sem a lembrança de que foram os próprios meios os que utilizaram uma tragédia aérea como desculpa para se omitir a respeito do movimento. Governo e imprensa retomaram o tema estudantil somente durante a semana dos feriados de festas pátrias, a imprensa insistindo na tese da debilidade do movimento, e o governo tentando assustar os estudantes com a ideia de decretar encerrado o ano letivo com a reprovação de todos os estudantes mobilizados.
Diante disso, o movimento realizou sua aposta mais arriscada, que acabou sendo, também, a mais genial. Um dia após o anúncio governamental da perda do ano letivo, Camila Vallejo chamou a medida de “política terrorista” e convocou uma grande marcha para o dia 22 de setembro. Apesar dos vaticínios da imprensa de que o evento seria um fracasso, o movimento novamente conseguiu superar, ainda que por pouco, as cem mil pessoas, em Santiago. Bem menos que as quase 200 mil das melhores marchas, mas ainda assim contundente, sobretudo após um período de quase um mês em que somente as redes sociais serviram aos interesses comunicacionais do movimento, embora eles não tenham servido tanto ao inimigo – na véspera, uma manifestação em frente ao La Moneda, convocada via Twitter e Facebook por estudantes ligados aos partidos de direita, apoiando o presidente com um cartaz dizendo “não queremos perder o ano”, reuniu menos de dez pessoas.
A reação da imprensa a outra marcha dos estudantes foi de desconcerto e retomou-se a pauta da marginalização do movimento, com ênfase nos distúrbios e nos confrontos com a polícia – a que viu desaparecer, sem retorno, a cobertura midiática do julgamento dos oficiais que teriam disparado e causado as mortes civis no final de agosto.
Ironicamente, uma pequena vitória volta a ser boa notícia para o movimento estudantil chileno no final do mês de setembro, movimento que eles iniciaram com mais força que nunca. A ironia também atinge o governo, que termina o mês com uma derrota muito menos grave do que as de agosto, mas que pode terminar sendo muito mais decisiva, se outubro comprovar a imunidade do movimento estudantil às estratégias de comunicação mais desesperadas.
* Publicado originalmente no site da Revista Fórum.