Rio de Janeiro, Brasil, 14/11/2011 – A falida expedição à Líbia em plena guerra civil, do jornalista e escritor brasileiro Mário Augusto Jakobskind, se converteu em uma lúcida análise sobre a situação desse país do norte da África e das forças que tomaram o comando após a queda do regime de Muammar Gadafi. Jakobskind, de 68 anos, correspondente do semanário Brecha do Uruguai, foi convidado em agosto pela organização não governamental Fact Finding Committee, junto com personalidades de vários países, a visitar a Líbia, afundada na época em pleno conflito armado interno e exposta aos constantes ataques aéreos por parte das forças da Organização do Atlântico Norte (Otan).
Entretanto, quando estava prestes a cruzar a fronteira entre Tunísia e Líbia, a comitiva brasileira que integrava precisou regressar por razões de segurança, diante da intensificação dos bombardeios e da própria guerra civil. Em seu livro “Líbia: barrados na fronteira – O que não saiu na mídia sobre a invasão da Líbia”, Jakobskind analisa o contexto das forças rebeldes que derrubaram Gadafi apoiadas pela Otan e sua relação com a rede extremista Al Qaeda.
IPS: O que aconteceu para que a comitiva brasileira não pudesse chegar à Líbia?
MÁRIO AUGUSTO JAKOBSKIND: A Fact Finding Committee convidou delegações de vários países para verificar no terreno o que acontecia na época no território líbio e elaborar um informe neutro sobre os impactos dos bombardeios da Otan para ser entregue a Kofi Annan, ex-secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). A comitiva brasileira de nove integrantes, dois deles delegados oficiais do Congresso, seria a última a chegar, pois já haviam se adiantado grupos de outros países, como Estados Unidos, Venezuela, França e Itália. O plano de viagem era de dez dias de duração. Saímos de São Paulo e chegamos à Tunísia após escala em Paris, para em seguida seguirmos por terra para Trípoli porque o espaço aéreo estava bloqueado. Saímos no dia 14 de agosto e, bem nesse dia, os bombardeios da Otan se intensificaram. Os próprios dirigentes da organização não governamental em Trípoli nos disseram para voltarmos para a Tunísia. Mudou a pauta, como dizem os jornalistas. Se tivéssemos chegado 24 horas antes teríamos conseguido entrar na Líbia.
IPS: Qual foi o motivo de ir à Líbia, apesar dos riscos?
MAJ: Um jornalista nunca recusa um convite desse tipo, eu estava psicologicamente preparado e tinha consciência do risco, de que tudo poderia ocorrer em uma situação de guerra. A ideia era produzir um relatório, mas eu também queria fazer um trabalho especial sobre o país, a sociedade e os efeitos dos bombardeios. Além disso, a organização não governamental que nos convidou garantia as condições de segurança.
IPS: O que os meios de comunicação deixaram de publicar sobre a invasão da Otan à Líbia?
MAJ: Sobre o papel da Al Qaeda, por exemplo. É muito raro para uma organização como essa ter participado junto com a Otan na luta contra Gadafi. Tive estas informações por meio de investigadores e correspondentes que acompanharam a situação a partir da Líbia e desde o começo. Isso não foi publicado. Há dirigentes da Otan vinculados à extrema direita, como seu atual secretário-geral, Anders Fogh Rasmussen, que foi primeiro-ministro da Dinamarca entre 2001 e 2009. Rasmussen liderou uma coalizão com a ala direita do partido conservador popular e trabalhou intensamente com o partido popular dinamarquês, o grupo político irmão do Partido Progressista da Noruega, onde militava Anders Breivik Behring, o neonazista autor dos ataques deste ano nesse país, nos quais morreram dezenas de pessoas.
IPS: Como vê o rumo da chamada Primavera Árabe?
MAJ: Cubro os assuntos do Oriente Médio há 20 anos. É preciso separar o que ocorreu no Egito e na Tunísia do ocorrido na Líbia. São diferentes, cada um com suas idiossincrasias e consequências. A Líbia, por exemplo, é o país com maior Índice de Desenvolvimento Humano do Norte da África. A maioria de seus 6,5 milhões de habitantes vive em Trípoli e em Bengasi, no nordeste. Sempre houve rivalidades entre o leste e o oeste representados por estas duas principais cidades do país. O regime de Gadafi conseguiu algo que é muito raro naquela região de petróleo, que foi enfocar os recursos do petróleo para a área social. Para os olhos do Ocidente, era sim uma ditadura. Na Líbia, há 140 tribos ou famílias e 30 delas dominam politicamente. Gadafi tomou o poder sem derramar sangue e conseguiu unificar o país. A partir de 2003, mudou o rumo para mostrar ao Ocidente que era confiável e, por exemplo, recebeu a então secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, e fez amizade com o governo britânico. Também afirmou em público que a Líbia financiou a campanha eleitoral do atual presidente da França, Nicolas Sarkozy, e não se deve esquecer que Gadafi era dono de 10% das ações da montadora italiana Fiat.
IPS: Como vê o futuro da Líbia e sua reconstrução?
MAJ: É um jogo de marketing político de democracia. Os que vão dominar a Líbia dos bastidores serão as potências europeias, como França e Itália, e também Estados Unidos. Os líbios não conhecem o conceito de democracia como o defendido pelo Ocidente. O que aconteceu nesse país foi um processo de recolonização de uma dependência que remonta ao Século 19. Os rebeldes nada seriam se não tivessem o apoio da Otan, para a qual as violações dos direitos humanos serviram de pretexto para intervir. Houve crimes dos dois lados do conflito na Líbia. Além disso, os que vão lucrar com a reconstrução serão aqueles que destruíram esse país. Envolverde/IPS