Para o senso comum brasileiro (e de muita outra gente também), a Islândia fica no fim do mundo, ou perto. À beira do círculo polar ártico, entre os países nórdicos do continente europeu e a Groenlândia, esse pequeno país de pouco mais do que 300 mil habitantes (menos do que a da grande maioria das capitais brasileiras) só é lembrado recentemente quando algum de seus vulcões joga cinzas sobre o tráfego aéreo europeu, fechando aeroportos e perturbando viagens.
É, mas nem sempre foi assim. No começo deste século, a pequena Islândia virou notícia: era a menina dos olhos do capitalismo tardio (porém triunfante) e completamente financeirizado. Desregulamentou completamente seu sistema bancário. As taxas sobre os ganhos de capital eram baixíssimas perto de outras no continente. Choveram capitais especulativos sobre os vulcões, vales e geleiras. Para dar uma mão, a Islândia desregulamentou completamente seu setor trabalhista. Choviam empregos também. Houve uma vaga migratória, sobretudo de jovens, da Alemanha e de outros países europeus para lá. Não tinham garantia trabalhista nenhuma, but who cares? Quem se importa? O clima geral era de oba-oba total: jamais o paraíso capitalista voltaria a ser perturbado por qualquer indigestão.
Mas… o tempo passou, e o Lehman Brothers e outras instituições financeiras quebraram. A maré quebradeira logo chegou à Europa. Os capitais se retraíram. Com a mesma facilidade com que tinham entrado na banca desregulada, os capitais especulativos foram embora. Num país cujo PIB anual era de 8 bilhões, a dívida pública estourou os limites e as dívidas dos três principais bancos privados passavam do equivalente a 50 bilhões de euros (a Islândia não é da zona do euro). Para completar o quadro, bancos ingleses e holandeses, que tinham investido dinheiro de seus correntistas na Islândia, congelaram os ativos daqueles bancos. Enquanto isso, a Islândia nacionalizava a dívida dos bancos, e anunciava a impossibilidade de pagar os investidores internacionais. O Banco Central do país não tinha fundos para isso.
Mais ainda: milhares de pessoas dormiram empregadas e acordaram na manhã seguinte sem emprego e sem nenhuma garantia, indenização ou seguro desemprego que fosse, sem aviso prévio. Afinal, não fora tudo desregulamentado para “criar empregos?”. O então governo conservador, no poder há décadas, chamou o FMI, e lá vieram as receitas de sempre: cortes nos investimentos públicos, saúde, educação, ajuda social, etc. O caos se aprofundou.
Mas… Mais uma vez, mas… Havia eleições no meio do caminho, essa coisa às vezes detestável. O governo conservador caiu, subiu uma coligação social-democrata. O novo governo não se limitou a nacionalizar as dívidas dos bancos: nacionalizou temporariamente os próprios bancos. Fez uma intervenção pesada, abriu processos, houve até prisões de executivos considerados desonestos ou criminosamente negligentes. Saneou o setor.
Ao mesmo tempo, sem renegar o FMI (deu uma de Brasil…), como era dona de sua moeda e não estava, portanto, atada ao euro, a Islândia negociou créditos e investimentos em outras frentes: Suécia, Dinamarca, Noruega, França, Alemanha. Tinha na mão o sistema bancário nacionalizado, e mais seguro do que antes. Isso comprovou ser uma “moeda forte” na negociação. Além disso, com a nacionalização, tinha controle sobre as modalidades de empréstimos. Hoje, dois dos três bancos foram reprivatizados, mas o terceiro continua estatal. Sem abrir mão de uma nova disciplina fiscal e do equilíbrio da dívida, hoje em torno de 90% do PIB, voltou a investir na proteção social. Os empregos voltaram, mais seguros do que antes. Jovens que antes tinham debandado feito uma revoada de aves migratórias, migratoriamente retornaram a postos de trabalho hoje mais seguros do que antes.
Não digo que a Islândia seja um exemplo único para o mundo, mas vai bem obrigado. Talvez isso tenha sido possível contando com a pequenez de sua economia. Mas também com a determinação de agir nos pontos fundamentais da questão: sanear o sistema financeiro, controlá-lo sem sufocá-lo, investir no equilíbrio social e manter a soberania nacional.
Para tranquilizar credores e investidores (embora a contenda com a Inglaterra e a Holanda continue, já que esses países indenizaram os credores e agora querem que a Islândia os reembolse, coisa que ela tem se recusado a fazer até o momento, pelo menos), a Islândia pediu para ser admitida na União Europeia.
Esses processos demoram algum tempo. E a Islândia terá tempo para decidir se quer mesmo entrar. Se até o momento da palavra final ainda houver União Europeia.
P.S. – Com seu estilo próprio, a Islândia tomou medidas análogas às da Malásia, Brasil, Argentina, Uruguai, distanciando-se do receituário ortodoxo em maior ou menor grau. Enquanto isso o Consenso de Bruxelas se mantém atrelado ao ideário de Washington, hoje finado, e vai arrasando o estado do bem-estar social. Se o mundo entrar numa recessão brutal, será por causa das cinzas de Bruxelas, não das da Islândia.
* Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
** Publicado originalmente no site Agência Carta Maior.