Autora do livro ‘Água, o Ouro Azul’ e vencedora do Right Livelihood Award, Maude Barlow luta pela efetivação da água como um direito humano e alerta para a iminência da privatização do acesso aos recursos hídricos do Aquífero Guarani.
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A água é para o século 21 como o petróleo era para o século 20, é o que estamos acostumados a ouvir. Não há mais dúvidas que a água é um tesouro que precisa ser prioritário nas políticas de gestão dos países e que sim, ela já começou a ser motivo de guerras assim como o petróleo é há tantas décadas.
Países como a China, superpopulosos e com recursos naturais cada vez mais escassos, já buscam recursos hídricos de qualidade nos seus vizinhos, a exemplo da região dos Himalaias tibetanos.
Porém, o alerta soado por ativistas ao redor do mundo, mascarado por campanhas publicitárias e políticas, é da corrida de grandes investidores para se apoderar das reservas de água potável nos países mais pobres.
“Rios inteiros foram comprados por corporações… O setor privado viu que o mundo ia para uma crise da água e está se movimentando”, enfatizou a ativista canadense de direitos humanos Maude Barlow, autora do livro “Água, o Ouro Azul”.
Fundadora do projeto Blue Planet Project (Projeto Planeta Azul), ela é chefe do Council of Canadians, a maior organização canadense de militância pública. Entre 2008 e 2009 atuou como consultora-sênior em água do presidente da 63ª Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Por seu trabalho no movimento pela justiça da água recebeu o prêmio sueco Right Livelihood Award (o “Nobel Alternativo” do Meio Ambiente).
Há décadas envolvida com movimentos sociais, Barlow luta pelo reconhecimento da resolução de 2010 da Assembléia Geral das Nações Unidas que declara o acesso à “água potável e segura e ao saneamento” como um direito humano.
Atualmente quase dois bilhões de pessoas vivem em áreas com acesso restrito à água e 3 bilhões não têm água corrente dentro de um quilometro das suas residências. A cada oito segundos uma criança morre de doenças relacionadas à água contaminada.
“Não é nenhum exagero dizer que a falta de acesso à água potável é a maior violação dos direitos humanos no mundo”, ressaltou.
A privatização da água que Barlow enfatiza acontece quando o seu uso é comercializado por grandes empresas através da obtenção de concessões do governo. O resultado é que elas acabam “negando acesso às pessoas que não têm condições de pagar”.
“A água é uma commodity, parte do patrimônio da humanidade ou um direito humano?”, questiona. Economistas alegam que o comércio pode incentivar maior eficiência na distribuição da água.
Ela cita o exemplo da Austrália, primeiro país a instaurar um sistema de comércio da água já a partir de 1982 nos estados do sul.
Entre 2008 e 2009, o mercado australiano de licenças para uso de água teve negociações da ordem de A$ 2,74 bilhões, um aumento de 70% em relação ao ano anterior (Comissão Nacional da Água, 2009). O sistema crescente envolve bolsas de valores, advogados e corretores.
O valor da água aumentou muito nos últimos anos na Austrália. Em 1990, o valor de uma licença permanente no estado de South Australia era de cerca de A$ 50-100 por megalitro e alcançou uma alta de cerca de A$ 2.600 em 2007. Desde então, o valor caiu levemente, com o governo pagando agricultores (que possuem as licenças de uso) cerca A$ 2.075 o megalitro em 2010. Estas concessões serão convertidas em “títulos ambientais” controlados pelo governo federal.
Barlow denuncia que na Austrália, empresas do agronegócio começaram a comprar as concessões dos pequenos agricultores e o preço da água explodiu, sendo que agora até mesmo o governo tem dificuldades de compra-la novamente.
Outros países que têm esquema de comércio da água são Estados Unidos, África do Sul, Espanha (nas Ilhas Canárias) e Chile. Neste último, compradores e vendedores podem executar negociações em curto prazo de volumes específicos, concessões anuais ou vendas permanentes.
Especialistas alegam que em nenhum lugar do mundo o sistema de venda de água é tão permissivo e com supervisão ínfima do governo como no Chile, onde os direitos à água são propriedade privada desde 1981, durante e ditadura militar.
No norte do país, produtores rurais competem com empresas de mineração na captação dos rios e escassos recursos hídricos, deixando cidades como Quillangua a míngua, denuncia o jornal The New York Times. A população atual da cidade agora é de cerca de um quinto do que era há duas décadas, apenas 120 habitantes.
Brasil
O apelo de Barlow recai sobre a nossa responsabilidade no cuidado sobre as águas em território brasileiro e especialmente na gestão das reservas hídricas transfronteiriças, como o Aqúifero Guarani. Ela esteve em Florianópolis na última quarta-feira (9) para o I Congresso Internacional “O futuro da água no Mercosul”.
“Vocês estão sentados sobre um vasto recurso hídrico, um tesouro em um mundo onde a demanda aumenta e a oferta diminui, isto é geopoliticamente cada vez mais importante”, comentou Barlow.
A necessidade de manejar adequadamente as atividades que se desenvolvem sobre a área do Aquífero Guarani, levando em conta não apenas a quantidade consumida, mas também a poluição gerada (fertilizantes, agroquímicos, esgoto) é urgente.
“Sofremos com o mito da abundância e isto é errado. Estudos indicam que até mesmo os Grandes Lagos (fronteiro Estados Unidos/Canadá) podem secar em 80 anos, então o Guarani também pode. Não existe aquífero seguro quando as águas superficiais estão sendo poluídas”.
Ela enfatiza que a sua maior preocupação é que o Guarani seja dominado pelas grandes corporações com o argumento que os governos não dão conta e apenas o setor privado pode cuidar da água. Este fato fica transparente quando olhamos para o setor de biocombustíveis, “BP e Shell estão vindo para o Brasil e vão precisar de muita água”, alerta.
“Este aqüífero vai virar uma commodity como o óleo e o gás e será colocado a venda… O setor privado tem o seu papel, mas não pode governar, pode sim construir a infraestrutura, mas a gestão tem que ser pública”.
No Brasil a Política Nacional de Recursos Hídricos coloca a água como um bem de domínio público, um recurso natural limitado, porém dotado de valor econômico.
Bem comum
A água é um bem comum da humanidade e das futuras gerações, ninguém pode se apropriar dela, pois deve ser compartilhada e protegida, defende Barlow.
Ela aponta como um exemplo bem sucedido o modelo de gestão assumido pelo estado norte-americano de Vermont, onde a água é um bem público servindo a comunidade, garantindo que a prioridade é o abastecimento das pessoas, não do setor privado.
Outra iniciativa de sucesso segundo Barlow são as constituições de Bolívia e Equador.
“A constituição do Equador é a constituição da Água, têm uma concepção biocêntrica, atribui direitos à natureza, que é tradada como um ente coletivo de direitos”, comentou o professor Doutor da Universidade Federal de Santa Catarina Antonio Carlos Wolkmer.
“Já a constituição na Bolívia, o estado plurinacional representa mais de 30 etnias em um novo modelo de política que transcende o Estado nacional”, completou Wolkmer.
A partir da resolução A/HRC/15/L.14 da ONU, a água se tornou um Direito Humano, portanto os países têm o dever de formatar planos para suprir quem não tem acesso à ela.
Neste contexto, Barlow defende que a região do Guarani e do Rio da Prata sejam declarados como “Bioregião Protegida”, assim como a Grande Barreira de Corais e o Serenguetti.
Cada biorregião tem características peculiares como clima, vegetação, recursos hídricos, topografia, solo, fauna e comunidades humanas, seu conceito é comumente utilizado para fins de gestão ambiental, por dar ênfase à proteção da natureza. Está, portanto, diretamente relacionado aos conceitos de sustentabilidade e de ética ambiental.
Barlow lembra uma frase de Martin Luther King:
“A legislação não modificará o coração, mas restringirá os sem coração (tradução literal)”.
Vídeo: ‘Ouro Azul: A Guerra Mundial pela Água’ parte 1/9.
* Publicado originalmente no site CarbonoBrasil.