Enquanto a Funai arrasta processo de demarcação de terras, indígenas do Mato Grosso do Sul continuam no alvo dos pistoleiros. A mais recente vítima é um cacique de 59 anos que resistia ao descaso.
Pelo menos um líder indígena foi baleado com armas de grosso calibre e, possivelmente, acabou morrendo na manhã desta sexta-feira (18) no Mato Grosso do Sul. Nísio Gomes era seu nome. Tinha 59 anos e encabeçava um grupo de aproximadamente 60 guarani-kaiowás que lutam pela demarcação de um pedaço de terra entre os municípios de Amambaí e Ponta Porã, a 30 minutos da fronteira com o Paraguai.
“Ele está morto”, lamentou um dos companheiros do cacique. “Não é possível que tenha sobrevivido com tiros na cabeça e por todo o corpo.” Os relatos da comunidade apontam que pelo menos outras duas pessoas — uma mulher e uma criança — estão desaparecidas e podem também haver sido alvo dos projéteis. Outras versões dizem que existem mais três vítimas: dois jovens e uma criança.
Testemunhos de lideranças indígenas da região e de pessoas que presenciaram o ataque asseguram que os atiradores chegaram ao acampamento Tekohá Guaiviry, onde os guarani-kaiowás estão instalados, por volta das 6 horas da manhã em caminhonetes modelo Hilux e S-10. “Estavam todos com máscaras e jaquetas escuras. Pediram para todos irem para o chão. Portavam armas calibre 12”, disse um sobrevivente ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI), organismo pertencente à igreja católica e vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “Chegaram para matar nosso cacique.”
Ainda não se pode afirmar com exatidão se Nísio Gomes de fato faleceu, pois seu corpo não está no acampamento Tekohá Guaiviry. Após ser atingido pelos disparos, o cacique foi colocado na caçamba de uma das caminhotes utilizadas na fuga dos pistoleiros, cujo paradeiro permanece desconhecido. Há temores de que seus captores tenham levado seu cadáver para o Paraguai.
As investigações apenas começaram. Segundo o CIMI, nesta mesma sexta-feira homens da Polícia Federal e integrantes da Articulação de Povos Indígenas do Brasil (Apib) e do Conselho Aty Guassu (Grande Assembleia Guarani) estiveram na cena do crime. Constaram que, além de disparar e sequestrar o cacique Nísio, atearam fogo a pelo menos uma das barracas montadas pelos guarani-kaiowás. Alimentos resultaram queimados.
O CIMI informa que o grupo de guarani-kaiowás está instalado no acampamento Tekohá Guaiviry desde o último dia 1º de novembro. O local encontra-se cercado pelas fazendas Chimarrão, Querência Nativa e Ouro Verde. Os indígenas reivindicam a área — que está rodeada por interesses agropecuários e perigosamente próxima a uma fronteira influenciada pelo tráfico de drogas e contrabando de mercadorias — como território de ocupação tradicional e reclamam sua demarcação pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Ameaças constantes
No dia 14 de novembro, uma carta assinada por lideranças do povo kaiowá e guarani do Mato Grosso do Sul, resultado do 1º Encontro de Tekoharãs (acampamentos indígenas), já denunciava o acosso sofrido pelos habitantes do Tekohá Guaiviry. “Nossos irmãos retornaram ao seu tekohá [terra dos índios, espaço vital] e encontram-se, neste momento, cercados por jagunços a serviço de fazendeiros”, diz o documento. “Além da ameaça de ataques violentos, agora sofrem com a fome em função do covarde cerco a que estão submetidos. Tememos pela vida e integridade física de nossos parentes.”
Dito e feito. Uma publicação do CIMI sobre a violência praticada contra os povos indígenas em território sul-matogrossense nos últimos oito anos revela que o Estado, uma das potências agrícolas do país, é o que mais abriga acampamentos indígenas no Brasil. No total, são 31 tekoharãs. Em 2009, eram 22 — sinal inequívoco de que o processo de demarcação de terras está aquém do necessário. Até porque as reservas oficializadas, como a que está no município de Dourados, sofre com superlotação e índices de homicídio semelhantes aos bairros mais perigosos de São Paulo ou Rio de Janeiro. A fome só não vigora devido à distribuição de cestas básicas.
Sem lugar para morar e exercer seu modo de vida, portanto, os guarani-kaiowás têm poucas opções a não ser instalar-se nas terras que reivindicam — mas que o poder público não lhes concede. “São mais de 1,2 mil famílias vivendo em condições degradantes à beira de rodovias ou sitiadas por fazendas”, explica o organismo indigenista. O estudo do CIMI informa que a precariedade das instalações, somada à violência, já provocou a ocorrência de pelo menos 4 mil casos de desnutrição infantil entre os guarani-kaiowás desde 2003. “Atualmente, 98% da população originária do Estado vive efetivamente em menos de 75 mil hectares, ou seja, 0,2% do território estadual. Em dados comparativos, cerca de 70 mil cabeças de gado, das mais de 22,3 milhões existentes no Mato Grosso do Sul, ocupam área equivalente às que estão em posse dos indígenas hoje.”
Apesar disso, o Mato Grosso do Sul é uma das unidades federativas com maior população indígena do Brasil: 53,9 mil, de acordo com o Censo 2008 do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Só os pertencentes à etnia guarani-kaiowá, afirmam os jornalistas e antropólogos Spensy Pimentel e Joana Moncau, são atualmente 45 mil pessoas. “Atrasada desde os anos noventa graças às pressões políticas do poderoso agronegócio da região, a demarcação definitiva das terras está prestes a ser iniciada”, esclarecem. Desde 2008, seis grupos de especialistas e peritos contratados pela Funai realizam estudos históricos e antropológicos na região para definir quais são exatamente as áreas reivindicadas como sendo de ocupação tradicional.
Segundo Spensy e Joana, desde 2009 ao menos 16 guarani-kaiowás perderam a vida no Mato Grosso do Sul, vítimas de violência ou do descaso das autoridades: três na ocupação Ypoí, em Paranhos, assassinados; quatro no acampamento de Kurusu Amba, município de Coronel Sapucaia, também assassinados — outros três morreram ali por falta de atendimento médico após terem adoecido; e seis em Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante, sendo duas crianças (desnutrição), dois adultos (atropelamento) e dois adolescentes (suicídio).
“Estamos sofrendo porque o Estado brasileiro não quer cumprir aquilo que determinam a Constituição, a Lei e os tratados internacionais”, protesta a carta dos povos kaiowá e guarani. “Cansamos de esperar a boa vontade dos governantes e decidimos nos organizar para que nós mesmos possamos fazer valer nossos direitos históricos.” E foi exatamente por resistir e lutar pela recuperação de suas terras tradicionais — de seu tekohá, hoje nas mãos de fazendeiros — que nesta sexta-feira o cacique Nísio Gomes foi crivado de balas por jagunços.
Em carta pública, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), também vinculada à igreja católica, condena o descaso com que são tratadas as comunidades indígenas e quilombolas no Brasil. “Por serem grupos humanos que não se submetem aos ditames das leis do mercado e da economia capitalista, são tratados como empecilhos ao ‘desenvolvimento e progresso’. Quando se levantam para exigir seus direitos, são rechaçados violentamente.”
* Publicado originalmente no Blog Coletivo Outras Palavras.