Dizem alguns historiadores que os chineses, há muitos séculos, achavam que o oceano era uma imensidão estéril. Fecharam-se na terra, perderam o contato com inúmeras inovações técnicas no Ocidente. Isso lhes valeu derrotas e longos anos de sofrimento. Num país colonizado pelos portugueses, é difícil subestimar o oceano. No poema Mar Português, de Fernando Pessoa (“tudo vale a pena se a alma não é pequena”), os versos iniciais, menos conhecidos, são também emblemáticos: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ são lágrima de Portugal!”. Com a descoberta de petróleo na costa brasileira e, agora, as grandes reservas das camadas do pré-sal, o Brasil está diante de uma histórica opção diante do oceano.

O debate que se travou em torno dos royalties foi, na verdade, uma grande revelação. Os interlocutores querem definir como empregar o dinheiro. Estados, municípios, estudantes, todos têm uma fórmula para dividir os recursos do petróleo. O oceano passou a ser visto como uma galinha dos ovos de ouro. Discutimos, diante do petróleo marinho, com a excitação com que algumas famílias debatem o testamento de um tio bilionário.

Nasce aí a primeira cilada: supor que o oceano é apenas um imenso poço de petróleo, ignorando a diversidade da vida marinha e outros potenciais econômicos que a própria biotecnologia pode desenvolver. O perigo desta cilada é evidente em todas as declarações de alívio, porque o óleo vazado nas instalações da Chevron, na Bacia de Campos, se afastava do litoral. Sem dúvida, os prejuízos são maiores quando a mancha ruma para a praia. Mas não significa que seja totalmente inofensiva em mar alto.

O oceano não é uma cloaca. Ou, pelo menos, não deveria ser. Tartarugas recolhidas pelo Projeto Tamar revelam o estômago forrado de plástico, mergulhadores na Baía de Guanabara recolhem de tudo, de fogão a velha geladeira.

A faixa onde se vai explorar o pré-sal é rota de passagem da maioria das espécies em extinção no mar brasileiro. E o desastre da Chevron não mostrou apenas que estamos despreparados, mas também por que estamos despreparados. O Brasil só se preocupa com desastres quando eles acontecem. Nos primeiros anos do século, ante o vazamento na Baía de Guanabara e outros acidentes menores, a Petrobras investiu R$ 1,4 bilhão num plano de emergência chamado Pegaso. A empresa ficou tão interessada no tema que mandou uma equipe para estudar o desastre na Galícia, aproveitar a experiência no Brasil.

A explosão na plataforma Deepwater Horizon, no Golfo do México, apresentou uma novidade bem diferente da encontrada em vazamentos de navios. Para estes, uma solução é o projeto da obrigatoriedade do casco duplo, fórmula que, na maioria dos casos, impede que o óleo derrame no mar. O desastre com a Horizon mostrou que os mecanismos de controle do governo, mesmo o norte-americano, são frágeis. Aumentou a capacidade técnica das empresas em comparação à capacidade de fiscalizar do governo. A Marinha norte-americana não tinha condições técnicas para entender e reparar por si mesma o caos na plataforma.

Vivemos uma experiência semelhante no Brasil, quando tentamos criar algumas normas para um mecanismo chamado estocagem de carbono, no fundo do mar ou nas rochas. Quase nenhum parlamento do mundo avançou nesse campo porque a técnica, basicamente, é dominada pelas empresas interessadas.

Diante do desastre no Golfo do México, o Brasil reagiu. Mas reagiu apenas no tempo em que o assunto estava em cartaz. A ideia de um plano nacional de emergência não saiu do papel.

Sempre se pode afirmar, como o fez a ministra Izabella Teixeira, do Meio Ambiente, que o desastre da Chevron não foi assim tão grande, logo, não era caso de acionar um plano nacional. Mas se nos planos simulamos com desastres inventados, por que não usar um desastre real para ensaiar?

Não houve transparência no caso da Chevron. Anunciado discretamente no dia 10, só uma semana depois o episódio saiu do anonimato. A dimensão do vazamento foi monitorada por uma ONG nos Estados Unidos, a SkyTruth. A transparência é fundamental se queremos mobilizar voluntários e realmente dar uma chance de defesa aos pescadores e comunidades litorâneas.

No ano que vem vamos discutir na Rio+20, entre outros temas, a economia verde. Mas a ONU lembra que é preciso também discutir a economia azul, talvez mais preocupada com a pesca e alimentos. Os oceanos podem dar muito mais. E, além disso, as correntes marinhas são um ponto de referência nas mudanças climáticas: quebrada a sua regularidade, as do processo de aquecimento tornam-se mais perigosas.

Não é grave apenas a falta de um plano nacional de emergência. É grave também todo o despreparo institucional para administrar os problemas no oceano. Falta uma política para o mar, algo que escapou até à maioria dos militantes verdes, concentrados na floresta amazônica e na Mata Atlântica. O Brasil prepara-se para tensionar o Oceano Atlântico com intensa exploração de petróleo e, em vez de examinar mais amplamente uma economia azul, perdeu-se num só tema.

Enquanto discutimos para onde vão os ovos de ouro, poucos se dão conta de que estamos, lentamente, matando a galinha. Alguns prefeitos, de forma caricata, chegaram a ligar para deputados quando se discutia o pré-sal: “Quando vem o dinheiro? Já existe algum para nós?”

Grande parte dos biólogos marinhos trabalha hoje para as empresas de petróleo. Os avanços da Petrobras na gestão de desastres poderiam inspirar até a criação de uma empresa brasileira para atender os desastres no continente. Mas há diferenças entre empresa e país. Ignorá-las significa que não é preciso fiscalizar o estágio atual de seu plano de emergência, os problemas trabalhistas na Bacia de Campos, os acidentes sofridos pelos petroleiros.

O vazamento da Chevron foi um alerta. Fernando Pessoa, num de seus versos, fala de uma alma atlântica. Se isso existe, parece que não a herdamos. Os royalties ofuscaram o oceano.

* Fernando Gabeira é escritor, jornalista e político brasileiro.

** Publicado originalmente pelo jornal O Estado de S. Paulo e retirado do site IHU On-Line.