As economias mais frágeis da Eurolândia, as chamadas periféricas, continuam sob a estrita vigilância dos mercados financeiros, mas agora gozam de boa companhia. Chegou a vez de a Alemanha provar das poções amargas destiladas nas retortas dos senhores do universo. No último leilão de Bunds, títulos do Tesouro germânico, os investidores recusaram 2,35 bilhões de euros dos seis bilhões oferecidos. “Isto é um completo desastre”, declarou um analista da Monument Strategies ao Financial Times. Ralph Unlauf, economista de um banco estatal dos Länder do Hesse e da Turíngia, afirmou que o fracasso do leilão é um “voto de desconfiança na zona do euro”.
Seja como for, o “desastre” não irrompeu na cena europeia como um raio em céu azul. Na esteira da desregulamentação financeira, a criação do euro estimulou a competição entre os bancos alemães, franceses, suecos, austríacos e ingleses, o que promoveu um impressionante “movimento de capitais” intraeuropeu. A maioria dos ditos PIIGS caiu na farra do endividamento privado, facilitado, entre outras coisas, pela redução dos spreads entre os títulos alemães, o benchmark, e os custos incorridos na colocação de papéis públicos e privados dos países cujas moedas, se existissem, não proporcionariam tal moleza.
A exuberante expansão do crédito intraeuropeu gerou a bolha imobiliária espanhola e deflagrou uma explosão de consumo na periferia da Eurolândia e nos países do Leste do Velho Continente, os que ancoraram suas moedas no euro. A demanda frenética foi chuva criadeira para as exportações alemãs de manufaturados e, ao mesmo tempo, cavou buracos de dois dígitos na conta corrente dos pródigos eslavos e mediterrâneos. Nos tempos de euforia, os “gastadores” apresentavam contas-correntes amplamente deficitárias e resultados fiscais superavitários.
Com a eclosão da crise, as medidas governamentais de socorro aos bancos com grande exposição aos consumidores endividados transferiram o estoque privado para a dívida pública. Enquanto isso, as receitas dos governos despencavam, as despesas cresciam e os déficits se agigantavam.
Em meio à desconfiança quanto à solvência dos papéis soberanos, as lideranças europeias tropeçam em seus preconceitos e vacilações. Apresentada ao público como destemida, Angela Merkel reagiu ao fracasso do leilão. Acorreu pressurosa aos microfones para acalmar os mercados e declarar sua inconformidade com a emissão de eurobônus em substituição aos títulos “nacionais” denominados na moeda única. Merkel teme pagar juros mais elevados nos eurobônus. No clima de desconfiança que impera na Europa, os temores e a hesitação da chanceler alemã estão prestes a desencadear uma crise bancária.
São muitos os analistas que diagnosticaram a doença congênita do euro. É desvairado definir um espaço monetário comum sem o apoio de um arranjo jurídico-político capaz de prover o fundamento fiscal para a gestão de uma moeda fiduciária. Sendo assim, desta vez é prudente prestar atenção no que os mercados “dizem”: não é possível prosseguir na moeda única sem que o devedor soberano esteja unificado.
Em artigo publicado no Financial Times em 29 de setembro, George Soros recomendou que as autoridade se entendessem a respeito da criação do Tesouro comum. Enquanto o acordo não for celebrado, diz, três providências devem ser tomadas: 1. Os bancos seriam colocados sob a direção do Banco Central Europeu em troca de garantias temporárias e permanente capitalização; 2. O BCE obrigaria os bancos a manterem as linhas de crédito e os empréstimos; 3. O BCE permitiria o refinanciamento temporário a baixo custo de países como Espanha e Itália. “As medidas acalmariam os mercados e dariam tempo para a Europa desenvolver uma estratégia de crescimento, sem a qual o problema da dívida não pode ser resolvido”, conclui.
Enquanto isso, esquenta o debate sobre a conveniência de se permanecer na moeda única ou cair fora da “prisão” que impede as desvalorizações cambiais. A controvérsia envolve a esquerda que pretende o avanço da Europa unificada. Eles também sublinham as dificuldades da construção europeia na ausência de um pacto federativo e de suas consequências fiscais. Os xenófobos à direita, não é difícil adivinhar, pretendem retornar imediatamente às moedas nacionais.
À esquerda e ao centro, os defensores do euro consideram a proposta de saída da moeda única um recuo imperdoável, que levará a consequências nefastas, tal como a guerra de desvalorizações competitivas e o calote na dívida denominada na moeda comum. Já a corrente radical do sindicalismo não deixa barato. Sugere chutar o pau da barraca: 1. Anunciar o default e propor a reestruturação da dívida; 2. Nacionalizar os bancos e as companhias de seguros, desmantelar os mercados de securities e de derivativos, controlar duramente os movimentos de capitais
* Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, consultor editorial de Carta Capital.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.