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Cientistas pedem maior controle em experiências com humanos

Washington, Estados Unidos, 22/12/2011 – É necessário realizar melhorias significativas no sistema de proteção de seres humanos nas pesquisas médicas financiadas pelo governo dos Estados Unidos, tanto no país como no exterior, além de ampliá-lo ao setor privado, afirmam especialistas em bioética. Organizações que supervisionam testes clínicos continuam reclamando um controle mais rígido sobre as crescentes pesquisas feitas por companhias farmacêuticas privadas nos países em desenvolvimento.

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, encomendou à comissão de bioética, que funciona sob sua órbita, que revise as normas de proteção de seres humanos em testes clínicos após o escândalo causado pela divulgação de documentos sobre os experimentos extremos com humanos feitos na década de 1940 por cientistas norte-americanos na Guatemala.

Os documentos desclassificados indicam que pesquisadores do governo dos Estados Unidos infectaram deliberadamente com sífilis, gonorreia e outras doenças sexualmente transmissíveis, presos, prostitutas, soldados e pacientes psiquiátricos, sendo que a maioria não sabia do que acontecia.

Aproximadamente 5.500 guatemaltecos, segundo a Comissão Presidencial para o Estudo de Assuntos de Bioética dos Estados Unidos, foram envolvidos de forma deliberada para atuarem como cobaias em pesquisas médicas. Washington se desculpou no ano passado e Obama pediu ao painel de bioética que investigasse o ocorrido nesse país e revisasse a normativa atual de proteção de seres humanos em pesquisas científicas, especialmente as realizadas no exterior com dinheiro do governo.

A presidente da Comissão, Amy Gutmann, afirmou que o painel concluiu que a proteção é “forte e que não voltará a ocorrer nada igual ao ocorrido na Guatemala”, em testes financiados pelo governo federal. Ainda assim, são necessárias mais informações sobre as pesquisas que o governo apoia. Nas 14 recomendações que constam do informe, a Comissão pediu urgência ao governo no sentido de ter maior controle sobre os testes clínicos que financia.

Os Estados Unidos forneceram fundos para 50 mil estudos no mundo em 2010, mas não há uma forma centralizada de conhecer seus detalhes. Dos 18 departamentos e agências federais que financiam pesquisas médicas nos Estados Unidos e no exterior, o painel descobriu que nenhum deles foi capaz de dar informação básica sobre a quantidade de humanos envolvidos, a quantidade de fundos envolvidos ou a localização geográfica de onde são realizados.

A legislação federal determina que os testes de “intervenção”, ensaios clínicos ou dispositivos, sejam registrados em uma base de dados centralizada, a ClinicalTrials.gov, mas as pesquisas de observação, epidemiológicas, de saúde pública e biomédicas com seres humanos não estão sujeitas ao mesmo requisito, diz o informe divulgado na semana passada.

É preciso criar um portal centralizado na internet onde cada agência ou departamento registre todas suas pesquisas com seres humanos, disse o painel, o que promoverá a transparência e o acesso público à informação. O governo também deve adotar um requisito para que os pesquisadores ou patrocinadores indenizem as pessoas lesionadas por sua participação em uma pesquisa médica, indicou o painel. Várias comissões federais recomendaram essa política, mas nunca foi aprovada nenhuma lei.

Nos Estados Unidos, as pessoas lesionadas em pesquisas médicas dependem de julgamentos ou do seguro do pesquisador ou de seu patrocinador, mas um processo pode demorar anos. A maioria dos países ricos tem leis que obrigam os pesquisadores a indenizar as pessoas lesionadas durante uma pesquisa médica, disse o painel.

Annelies den Boer, da Fundação Wemos, organização de controle de testes clínicos com sede na Holanda, elogiou a Comissão norte-americana por recomendar uma política obrigatória para indenizar as pessoas lesionadas. Mas o ônus da prova continua recaindo nos sujeitos humanos em muitos lugares, um problema para as comunidades com altas taxas de analfabetismo e pobreza. “É um problema, especialmente em contextos de baixa renda, quando há pessoas vulneráveis envolvidas”, alertou Boer à IPS.

A Wemos divulgou no ano passado um informe em que apresenta as histórias pessoais de sujeitos humanos de testes clínicos no mundo, e as dificuldades que encontraram muitos participantes ao denunciar seus problemas. Outra questão, segundo Boer, é que muitos órgãos reguladores, incluída a Associação Médica Europeia, dependem em demasia dos controles éticos dos lugares onde os testes clínicos são feitos.

A Comissão também recomenda criar um processo de avaliação dos pedidos de governos estrangeiros reconhecidos por terem “proteções equivalentes”, enquanto forem “pelo menos equivalentes” às deste país. No entanto, as revisões não costumam ser boas em países de rendas baixa e média, como a Índia, onde os comitês éticos têm pouco pessoal e pode haver conflitos de interesses, advertiu Boer.

Um informe da Organização Mundial da Saúde deste ano detalha a “preocupação” com os testes clínicos na Índia. Segundo a Wemos, os médicos desse país ganharam US$ 1.500 por paciente incluído no estudo. “Além disso, os laboratórios farmacêuticos subcontratam outros, e um estudo da Somo (Centro de Pesquisa sobre Corporações Multinacionais) fala da preocupação de haver um controle adequado da conformidade ética das empresas que contatam”, explicou Boer.

A britânica AstraZeneca testou seus remédios em vítimas do desastre químico ocorrido na cidade indiana de Bhopal, sem seu consentimento, no hospital destinado a atendê-los, informou a IPS em outubro. O jornal britânico The Independent informou em novembro que companhias francesas e norte-americanas, incluídas Pfizer e Quintiles, também estavam envolvidas e que pagaram ao hospital para poderem testar seus medicamentos em pacientes sem obter seu consentimento.

Catorze pacientes morreram durantes os testes feitos entre 2007 e 2010. Os remédios e tratamentos que saíram desses estudos foram aprovados para venda ao público na Europa e nos Estados Unidos, segundo o The Independent. Considerando estes problemas, a Comissão norte-americana disse que os pesquisadores devem garantir que o local de pesquisa escolhido para seus testes não abuse de pessoas vulneráveis.

O órgão também pediu que suas recomendações sejam aplicadas a empresas privadas, não apenas aos estudos financiados pelo governo federal. A legislação europeia diz que remédios testados violando pautas de proteção, como a Declaração de Helsinque, não devem obter autorização comercial. Com apoio de membros do Parlamento Europeu, a Wemos pretende pressionar para que se proíba a venda no mercado europeu de remédios testados em circunstâncias pouco éticas, contou Boer. A Administração de Drogas e Alimentos dos Estados Unidos (FDA) abandonou a Declaração de Helsinque em 2008.

Um representante do lobby da indústria biotecnológica PhRMA defendeu na Comissão de Bioética em novembro os testes clínicos das empresas privadas no exterior, argumentando que os membros de sua organização respeitam os seres humanos que participam de suas pesquisas. A Pfizer e a AstraZeneca pertencem à PhRMA, segundo a lista de membros que consta de seu site na internet. O representante disse que “as companhias farmacêuticas fabricam medicamentos que são usados em todo o mundo”, segundo um artigo publicado no blog da Comissão. “É ético testá-los apenas nos Estados Unidos?”, perguntou. Envolverde/IPS