Uma das principais características do sistema educacional brasileiro é a exclusão, que na educação básica afeta especialmente os estratos sociais menos favorecidos. Embora esta exclusão se inicie na educação infantil, vamos citar apenas um dado para que se possa ter uma ideia de sua gravidade: cerca de metade dos jovens sequer conclui o ensino médio e grande parte dos que o fazem apresenta enormes deficiências de aprendizado. As consequências dessa exclusão são terríveis, tanto para as perspectivas de inserção social e econômica dos excluídos, como para as possibilidades de desenvolvimento econômico, social e cultural do país. Se, já hoje, uma boa formação no ensino médio é necessária para a plena emancipação e a inserção na força de trabalho, nenhum país pode ter a expectativa de um futuro promissor se empurra para a margem tão grande proporção de seus jovens como nós o fazemos. E, na maioria dos casos, o jovem deixa a escola com um profundo sentimento de não pertencimento à sociedade e com a autoestima rebaixada, o que afeta profundamente o seu futuro relacionamento com essa mesma sociedade. As consequências estão à vista de todos.
Essa situação, totalmente inaceitável até mesmo para países com limitações econômicas maiores do que as nossas, é responsável por grande parte das nossas mazelas sociais e econômicas. Pior ainda: não apenas estamos numa situação ruim como estamos indo na direção errada, pois a taxa de exclusão do sistema escolar até o final do ensino médio aumentou ao longo da última década. No caso do Estado de São Paulo, por exemplo, apesar de a população na faixa etária correspondente à conclusão do ensino médio ter crescido em cerca de 20% no período, o número de conclusões, ao invés de crescer, diminuiu no mesmo tanto.
No ensino superior, a exclusão ocorre por meio de cursos privados, que criam enormes distorções. Por exemplo, a distribuição dos estudantes pelas diferentes áreas de conhecimento destoa fortemente do que ocorre nos demais países. A causa disto é o fato de as instituições privadas concentrarem seus cursos em áreas onde o investimento, em aulas práticas, laboratórios, professores muito especializados, etc., possa ser mantido baixo. Ainda mais: as instituições privadas formam seus estudantes com ênfase apenas no treinamento em aspectos da profissão que são valorizados no curto prazo, fazendo com que desenvolvimentos posteriores tornem seus egressos defasados. Nas instituições privadas, são limitadíssimas as possibilidades de o estudante ser engajado em uma boa iniciação científica, de dar continuidade aos estudos na pós-graduação, de ter efetivo acesso aos professores, de participar de grupos de pesquisa ou, pelo menos, assistir a seminários, palestras ou colóquios acadêmicos, de contar com boas bibliotecas e com laboratórios didáticos equipados e com pessoal preparado.
Além dos citados, a privatização cria muitos outros problemas. Como o principal critério das instituições mercantis é o financeiro, os cursos oferecidos e as regiões onde eles se instalam nada têm a ver com as necessidades do país ou das diferentes profissões e áreas de conhecimento: são majoritariamente cursos facilmente “vendáveis”, de baixo custo e nas regiões onde há clientela, não onde há necessidade. Assim, o retorno que oferecem para o país e mesmo para os estudantes, se não é nulo, é baixíssimo.
No último meio século, a privatização (medida em termos do percentual de matrículas) aumentou de 40%, imediatamente antes do período ditatorial, para os 75% atuais, de uma forma bastante sistemática. E se, na primeira metade do século passado, a rede de instituições de ensino superior privadas era constituída primordialmente por universidades confessionais que tentavam, em determinadas áreas, manter uma boa qualidade de educação, hoje, a absoluta maioria é formada por instituições movidas exclusivamente pelo ganho financeiro. É interessante notar que o único período em que a privatização não aumentou foi durante a “década perdida” da economia, a de 1980. Isto se deu, não por mérito dos governantes daquele período, mas, sim, como consequência da própria crise, ilustrando bem um dos males da privatização: transformar a educação em um ramo dos negócios faz com que, quando estes vão mal, aquela também vá. O resultado é que, ao invés de ser um instrumento de construção do país e de enfrentamento da crise, a maior evasão do sistema educacional, aumenta o contingente de desempregados e agrava a própria crise.
Se, hoje, nossa taxa de privatização destoa muito mais daquilo que se encontra ao redor do mundo (vale lembrar que nos Estados Unidos praticamente 70% das matrículas se encontram nos sistemas públicos), isto se deve às políticas no período ditatorial e ao neoliberalismo da década de 1990. Contudo, também os últimos anos (período que deveríamos chamar de “popular”?) continuaram a apresentar aumento significativo das vagas privadas, pois embora as instituições públicas tenham quase dobrado o número de vagas oferecidas na última década, principalmente por meio de instituições federais, as instituições privadas quase triplicaram as suas.
O argumento de que não há recursos, usado para justificar a privatização do ensino superior, não é válido. Qualquer que seja a forma e o local em que alguém estude, a conta é paga pela totalidade da população trabalhadora que, afinal, é a única fonte de recursos de um país. Cobrar diretamente dos estudantes, na forma de mensalidades, ou da sociedade como um todo, na forma de impostos, é uma opção política, sendo a primeira mais ineficiente e injusta do que a última. Além disso, como já mostrado em artigos nossos publicados no Jornal da USP (acessível pela internet), o investimento necessário para manter um estudante em um curso de graduação, na mesma área de conhecimento e com qualidade equivalente, é menor nas instituições públicas do que nas privadas. Por que, então, pagar mais, descarregar esses custos de forma mais injusta sobre a população para conseguir piores resultados para todos?
Uma evidência de que a privatização não é fruto da incapacidade financeira do setor público, mas, sim, uma política deliberada, é o fato de ela ser mais elevada nos Estados com maiores possibilidades financeiras: por exemplo, no Estado de São Paulo, recordista em privatização, há uma matrícula no setor público para cada 220 habitantes, situação muito pior do que nos demais Estados, onde a relação é de uma matrícula para cerca de 120 habitantes; ou ainda, uma vaga pública de ingresso para oito concluintes do ensino médio, contra uma para quatro nos demais Estados (dados de 2009).
E programas governamentais, como o ProUni, acirram nossos problemas. Dados recentemente divulgados mostram que menos de 0,2% dos concluintes do ProUni se formaram em cursos de medicina, contra cerca de 1% na média das instituições privadas e mais de 3% nas instituições públicas. Essa distorção ocorre, também, nas demais áreas fundamentais para o desenvolvimento do país, como as engenharias, as licenciaturas em física e química e, especialmente, a agronomia. Desse modo, apesar de aparentemente incluído, o jovem é, de fato, excluído das condições de estudo que ele merece e que, com seu potencial, poderia muito aproveitar. Há, ainda, outros aspectos a considerar. Apesar do ProUni arcar com as mensalidades, fica a questão de como os mais pobres poderão superar o fato de que, nas instituições privadas, moradia, alimentação e saúde subsidiadas inexistam, embora sejam fundamentais, em especial para o perfil dos estudantes selecionados.
É importante ainda observar que o ProUni atua ao arrepio da própria Constituição, que apenas tolera o repasse de recursos públicos a instituições privadas se essas forem filantrópicas, confessionais ou comunitárias e se aplicarem seus excedentes em educação, o que não é o caso da maioria das instituições beneficiadas pelo ProUni e por outras ações dos governos federal, estaduais e municipais. Afinal, isentar de impostos, taxas e contribuições sociais, como faz o ProUni, é aritmeticamente igual a transferir recursos direta ou indiretamente às instituições privadas de ensino.
Todos ganharíamos se a totalidade dos estudantes brasileiros estivesse em boas instituições públicas. Na forma que está instituído, o ProUni acaba por contribuir para aumentar um dos nossos mais graves problemas educacionais: a privatização do ensino superior por meio de instituições que tratam a educação única e exclusivamente como uma mercadoria. Da maneira como está, pagaremos caro no futuro.
* Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP, ex-presidente do Inep e da Adusp. Lighia Horodynski-Matsushigue é professora aposentada do Instituto de Física da USP e foi vice?presidente da Regional São Paulo do Andes-SN.
** Publicado originalmente no site Carta Capital.