Rio de Janeiro, Brasil, 13/1/2012 – O Brasil, por décadas emissor de migrantes para os Estados Unidos e a Europa, agora enfrenta seu próprio desafio humanitário: aplicar, aos haitianos que chegam em massa em busca de sobrevivência, a solidariedade internacional que apregoa como política.
O alerta veio à tona com uma série de reportagens publicadas na primeira semana do ano, denunciando a atividade de intermediários ilegais, os “coiotes”, para introduzir haitianos no Brasil, através da fronteira amazônica com Bolívia e Peru. Cada haitiano pagaria entre US$ 2.500 e US$ 5 mil para custear um percurso que incluiria passagem de avião para Equador, Colômbia ou Peru, e um posterior e árduo caminho por terra até o Brasil, segundo os testemunhos.
A secular diáspora haitiana aumentou após o terremoto que em 12 de janeiro de 2010 assolou um dos países mais pobres do mundo. Atraídos pelo auge que o Brasil apresenta, como a nova sexta economia mundial, e pelas grandes obras de infraestrutura com vistas à Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016, cerca de cinco mil haitianos escolheram este país como destino desde então, segundo o Instituto de Migrações e Direitos Humanos.
“O Brasil entrou no mapa da diáspora haitiana”, resumiu para a IPS o sociólogo Rubem César Fernandes, diretor da organização Viva Rio, que desenvolve projetos sociais, econômicos e culturais no Haiti. Existe uma diversificação dos destinos históricos dos emigrantes haitianos: Canadá, Estados Unidos, França, Antilhas Francesas e República Dominicana. Mas a atração pelo Brasil acrescenta motivos próprios, afirmou Fernandes.
Desde 2004, o país encabeça a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti e está cada vez mais presente no território caribenho. “O Brasil já é parte da consciência coletiva do Haiti”, analisou Fernandes ao se referir a vínculos afetivos e simbólicos, como a origem africana, a música e o futebol. Além disso, os primeiros sinais do Brasil ao receber imigrantes haitianos foram “simpáticos e acolhedores, não repressivos”, acrescentou.
“Cheguei em 1992, quando no Haiti não sentíamos a presença do Brasil”, disse à IPS o haitiano André Yves Cribb, engenheiro agrônomo que trabalha na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em projetos de cooperação e desenvolvimento para seu país. “O Brasil começou a estar mais ativo no cenário internacional e em sua diplomacia. Além disso, seu crescimento chama a atenção de quem busca como sobreviver”, disse Cribb, antes de acrescentar fatores mais subjetivos, como a identificação haitiana com o povo brasileiro.
A organização humanitária católica Cáritas destaca que a maioria dos imigrantes se concentra nas cidades fronteiriças de Tabatinga e Brasiléia, onde esperam a regularização de sua situação, com a concessão de visto humanitário para poderem trabalhar, já que no Brasil não são considerados refugiados. “O Brasil entende a situação. Não há maus-tratos e está concedendo vistos humanitários e de trabalho”, disse Cribb.
O problema é que durante a espera, que pode durar até seis meses, esses pequenos municípios não têm condições nem infraestrutura para receber tantos imigrantes. Por exemplo, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) informou que em Brasiléia, no Estado do Acre, há 1.250 haitianos, equivalentes a 10% de sua população.
Até 23 de dezembro, 4.015 haitianos haviam solicitado abrigo. Os pedidos de 3.396 estão em análise no Comitê Nacional para os Refugiados e o restante já está em processo. Os imigrantes “dormem nas praças ou amontoados até dez pessoas em um quarto medindo três metros por quatro”, contou um padre da localidade.
“Há um processo de exploração pelos ‘coiotes’ nas rotas migratórias que é evidente”, explicou à IPS José Magalhães, assessor nacional para gestão de riscos e emergências da Cáritas, que colabora na inserção dos que chegam. Os governos dos Estados amazônicos afetados não dão conta em matéria de moradia, alimentação e saúde, acrescentou. E muitas das haitianas que entraram no país estão grávidas, acrescentou. A lei brasileira facilita a permanência e a nacionalização dos filhos de estrangeiros nascidos em território nacional.
Ao começar 2012 a situação se agravou com a entrada ilegal de meio milhar de haitianos. Esta onda levou o governo a definir sua posição e adotar medidas, clareando sua aparente divisão entre conceder vistos humanitários e temer que ao fazê-lo esteja incentivando um “efeito chamada” de maciças chegadas no futuro.
A presidente Dilma Rousseff autorizou, no dia 10, a regularização da situação dos haitianos que já estão no Brasil. Ao mesmo tempo, determinou medidas restritivas para deter a entrada ilegal de imigrantes. A partir de agora somente serão concedidos vistos na embaixada brasileira no Haiti com a cota de cem por mês.
“O governo brasileiro não ficará indiferente à situação de vulnerabilidade econômica dos haitianos. Mas, quem não tem visto não pode entrar no país”, assegurou o ministro da Justiça, Eduardo Cardozo. Além disso, o governo reforçará suas fronteiras com Bolívia e Peru e negociará medidas especiais com esses países e mais o Equador. “Temos de atacar essa rota ilegal de imigração e de ação dos coiotes”, justificou o ministro sobre as medidas que localmente são interpretadas por muitos como uma barreira de fato aos imigrantes haitianos.
O haitiano Joseph Handerson, aluno do Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, questionou essas medidas. “Os que estão chegando estão na mesma situação dos que já chegaram e foram legalizados. Por que essa diferença?”, perguntou, antes de dizer que o Brasil “deveria repensar suas posturas e políticas humanitárias”.
Da mesma forma se pronunciou Magalhães, ao recordar que o Brasil construiu sua história com imigrantes da América Latina, Europa e África. “Na Cáritas vemos que, evidentemente, trata-se de uma situação humanitária e de solidariedade internacional de primeira ordem”, acrescentou.
Magalhães entende que se trata de “processos que não são fáceis”, mas a título pessoal destacou que o Brasil “tem de ter uma coerência política” e entender que entrou na rota da diáspora haitiana por sua nova condição de potência financeira e pela oferta de trabalho com vistas a eventos esportivos. “Deveria não se fechar, mas facilitar a permanência desses imigrantes”, disse, ao recordar a tradição humanitária do Brasil, que abriga 4.359 refugiados, dos quais 2.813 são africanos.
Cribb vê um duplo benefício na chegada de imigrantes haitianos, muitos já contratados em obras de represas. Entende que, diante “do auge econômico como país emergente que o Brasil vive”, os novos imigrantes – muitos deles com formação técnica ou universitária em áreas como engenharia – contribuiriam para essa pujança e se beneficiariam, ao mesmo tempo, de sua inserção em uma economia dinâmica.
Handerson explicou à IPS que 80% dos haitianos que chegaram passaram a viver na cidade de Manaus, capital do Amazonas, 10% foram para a Guiana Francesa e o restante para outros Estados brasileiros, como São Paulo, Roraima e Minas Gerais.
Do ponto de vista socioeconômico, 80% dos que vivem em Manaus têm emprego e trabalham como pedreiro, pintor, carpinteiro, metalúrgico ou garçom. As mulheres trabalham principalmente como domésticas, cozinheiras ou manicures. No caso de Tabatinga, também no Amazonas, com 1.300 haitianos, as condições são diferentes porque a oferta de trabalho é menor e os alojamentos são insuficientes.
Segundo o estudo, a grande maioria tem estudo secundário incompleto, mas também há os que terminaram o curso superior. Quase todos os que vivem em Manaus falam francês, creole e espanhol, e recebem salário em torno dos US$ 400. Envolverde/IPS