Madri, Espanha, 24/1/2012 – O juiz mais famoso da Espanha, o agora suspenso Baltasar Garzón, enfrenta desde ontem um novo processo, por ter tentado investigar crimes da ditadura franquista, na segunda e mais transcendente estação da via crucis jurídica que enfrenta. Garzón volta ao Supremo Tribunal cinco dias após ter ficado pronto para sentença o processo referente às escutas das conversações entre advogados defensores e presos pelo caso Gürtel, uma das maiores tramas de corrupção da democracia espanhola.
O novo processo tem especial relevância em nível mundial porque a atuação de Garzón se fundamentou na aplicação do direito internacional (em cujo uso foi pioneiro) aos crimes da Guerra Civil (1936-1939) e da ditadura do general Francisco Franco (1939-1975). Francisca Sauquillo, “Paquita”, destacada lutadora antifranquista disse ontem à IPS que “Garzón deve ser absolvido porque não cometeu nenhum crime e por ser uma referência na aplicação correta das leis na Espanha”.
Tanto no processo pelo caso Gürtel quanto no conhecido como “da Memória Histórica”, se deu a extraordinária circunstância de o Supremo Tribunal decidir contra a posição da promotoria, que nos dois casos pediu arquivamento por falta de fatos constitutivos de delito. Mas a corte, que tem a faculdade de processar juízes em atividade, prosseguiu o processo com base em demandas de acusações particulares por prevaricação, que consiste em tomar, com conhecimento, uma decisão injusta.
No caso da Memória Histórica, os queixosos são duas organizações de caráter franquista que pedem 20 anos de inabilitação para o juiz que processou o ditador chileno general Augusto Pinochet. No caso Gürtel o processo foi encerrado no dia 19 e os acusadores foram advogados do chefe da trama, Francisco Correa, e de outros imputados de subornar altos dirigentes do governante e conservador Partido Popular, que, paradoxalmente, ainda não foram julgados.
Joan Garcés, destacado jurista e secretário pessoal do presidente socialista chileno Salvador Allende (1970-1973), disse à IPS que o julgamento sobre os crimes do franquismo é “incorreto”. Declarou também que nele “se deverá admitir o testemunho de juristas reconhecidos internacionalmente, porque Garzón foi um dos mais firmes impulsionadores do direito internacional”, algo já negado.
A acusação de prevaricação se baseia no fato de o juiz ter aberto um processo de competência sobre o desparecimento forçado de 114.266 pessoas entre julho de 1936, quando houve um golpe militar contra o governo legal que deu origem à Guerra Civil, e dezembro de 1951. A acusação contra Garzón se baseia em ele não aplicar a Lei de Anistia de 1977, apesar de, pelo seu cargo, ser obrigado a conhecê-la e acatá-la.
Também se afirma que outra prevaricação sua é ter se declarado competente para investigar os desaparecimentos de pessoas durante a Guerra Civil e o franquismo, em um país onde dezenas de milhares de mortos permanecem enterrados em “valas”, sem que suas famílias tenha conseguido recuperar seus corpos.
Juan Ignacio Cortés, porta-voz do capítulo espanhol da organização Anistia Internacional, disse à IPS que é “escandaloso um juiz ser julgado por defender a justiça, a verdade e a reparação para as vítimas e os familiares de uma violação maciça dos direitos humanos”. Antes, a Anistia disse em um comunicado não ter importância Garzón ter infringido ou não a legislação nacional, pois é a Lei de Anistia de 1977 que impede de se iniciar processos por crimes contemplados pelo direito internacional.
Também denuncia que a manutenção dessa lei “supõe um descumprimento das obrigações assumidas pela Espanha em virtude do direito internacional”. Por isto, a Anistia considera que “jamais pode ser considerado crime a investigação de violações dos direitos humanos, mesmo que para isto seja necessário deixar de lado uma lei de anistia ou outras leis relativas à prescrição dos crimes”.
No fundo das acusações contra Garzón está sua decisão, há cinco anos, de autorizar a abertura de 19 fossas, entre elas uma na qual se supunha estava o poeta Federico García Lorca (1898-1936), imputando como responsáveis por esses fatos 35 altos cargos do regime franquista. A Sala do Penal do Supremo Tribunal declarou, em novembro de 2008, que Garzón não tinha competência para tratar do assunto. Em maio de 2009, a corte admitiu um julgamento oral pelo caso. Isto supôs uma suspensão como integrante da Audiência Nacional, onde são instruídos os grandes casos da Espanha.
Enrique Borcel, presidente do Observatório Hispano-Argentino de Madri, disse à IPS que o julgamento de Garzón faz com que tudo fique na escuridão, que não se saiba toda a verdade sobre os crimes das ditaduras, sejam espanholas ou de qualquer outra parte, “porque as ações e o exemplo deste juiz se destacam em todo o mundo”.
Borcel foi sequestrado e torturado em 1967 por militares da ditadura argentina da época e conseguiu a liberdade vendendo sua propriedade e seus escritórios para poder pagar “um resgate”, emigrando depois para a Espanha, onde reside desde então. Este ativista pelos direitos humanos insistiu no grande papel “desempenhado em nível mundial” por Garzón para que seja cumprida a lei de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).
Como exemplo, citou que graças a Garzón se começou a investigar na Espanha o que aconteceu com os milhares de fuzilados e enterrados sem identificação pelo franquismo, ou conseguir que na Argentina fossem julgados 43 militares e um civil, acusados de repressores durante a ditadura, depois de expedir uma ordem internacional de extradição.
Cortés, por seu lado, insistiu que o correto é o contrário ao que o Supremo Tribunal está fazendo: apoiar e promover a busca de justiça e de apoio às vítimas por defender os direitos humanos. É uma obrigação que consta do Direito Internacional, “que o Estado espanhol deve cumprir”, destacou.
Anistia, Human Rights Watch (HRW), Comissão Internacional de Juristas, Associação pela Recuperação da Memória Histórica se pronunciaram conjuntamente ontem em favor do juiz e recordaram a frase “Garzón é inocente, diga o que disser o Supremo”, pronunciada por Carlos Jiménez Villarejo em 2010, quando era promotor anticorrupção.
Reed Brody, conselheiro jurídico da HRW, afirmou que “é paradoxal Garzón estar sendo julgado por tentar aplicar em seu país os mesmos princípios que conseguiu promover com êxito no âmbito internacional”. Porém, o que acontece agora é que, “ao fim de 36 anos desde a morte de Franco, a Espanha vai julgar alguém com relação aos crimes cometidos durante sua ditadura, e esta pessoa é nada menos do que o juiz que tentou investigar tais crimes”.
Após estes dois primeiros processos, Garzón terá de enfrentar um terceiro, sobre se recebeu ilegalmente fundos do Banco Santander para realizar seminários em uma universidade dos Estados Unidos e se isso influiu em sua posterior decisão a favor do presidente do banco, Emilio Botín.
Além dos apoios dentro e fora da Espanha, os inimigos de Garzón parecem ter conseguido seu propósito, porque aparentemente é muito complicado que um juiz de 56 anos, volte a exercer o cargo do qual abriu portas ao direito internacional humanitário. Envolverde/IPS