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Aumenta o descontentamento com reformas na Espanha

Malaguenhas foram às ruas protestar contra as reformas do governo de Mariano Rajoy.Foto: Inés Benítez/IPS

Málaga, Espanha, 13/2/2012 – Nos menos de dois meses que está no poder, o governo espanhol do centro-direitista Partido Popular determinou mudanças em leis de educação e saúde, que elevaram os protestos da oposição política e da sociedade civil por considerá-las retrocessos. Convocadas pela Maré Violeta, movimento impulsionado na cidade de Málaga, sul da Espanha, por associações feministas e de luta pela igualdade de gênero, centenas de pessoas se concentraram no dia 10 nas principais praças de mais de 40 cidades do país, sob o lema “Nem um passo atrás em políticas de igualdade. Mobilize-se contra os cortes”.

No caso de Málaga, foram dezenas as mulheres que responderam à convocação. Em um clima festivo, acompanhadas por tambores, gritavam palavras de ordem como “Sem mulheres não há democracia” ou “Nós parimos, nós decidimos”, enquanto carregavam uma longa faixa violeta com as mãos simulando as ondas causadas pela maré. As medidas tomadas pelo governo de Mariano Rajoy incluem modificação da Lei de Saúde Sexual e Reprodutiva e da Interrupção Voluntária da Gravidez, vigente deste julho de 2010.

O ministro da Justiça, Alberto Ruíz-Gallardón, anunciou que serão propostas ao parlamento mudanças nos prazos e que se exija o consentimento paterno nos casos das menores que quiserem abortar. Por seu lado, o Ministério da Saúde adiantou uma mudança na anticoncepção de emergência, conhecida como “pílula do dia seguinte”, que desde 2009 é vendida sem receita médica nas farmácias espanholas. “São atentados contra os direitos básicos das mulheres”, denunciou à IPS a ativista Teresa Pineda, uma das porta-vozes da Maré Violeta.

Pineda esclareceu que, “embora falemos de reduções, o que está em jogo fundamentalmente são questões ideológicas e não econômicas”, além disso, classificou de “classista” a reforma da comumente chamada lei do aborto, porque “a mulher que quer abortar o faz”, e as de menos recursos recorrerão a lugares inseguros para sua vida, aumentando o circuito da clandestinidade. A lei em vigor, aprovada com apoio do então governo socialista do primeiro-ministro José Luís Rodríguez Zapatero (2004-2011), não exige o consentimento dos pais, mas sim que sejam informados de que sua filha – que deve ter entre 16 e 17 anos – vai abortar, sempre que não aleguem “perigo certo de violência intrafamiliar, ameaças, coações, maus tratos ou haja uma situação de desamparo”.

A reforma prevista implica uma mudança nos prazos para voltar a um sistema de suposições semelhante à regulamentação de 1985, pela qual as mulheres devem alegar motivos para sua decisão. Hoje é permitido a qualquer mulher abortar livremente até a 14ª semana de gestação. No entanto, a presidente da Federação Espanhola de Associações Pró-Vida, Alicia Latorre, se manifestou totalmente contra qualquer lei sobre esse assunto, por considerar que a interrupção voluntária da gravidez “é algo tão cruel que nenhuma sociedade desenvolvida deveria tê-la sequer como opção”.

“Igualdade e liberdade são incompatíveis com o aborto”, afirmou Latorre à IPS, acrescentando que a federação que dirige está “contente” pelo anúncio do governo e “na expectativa” diante das medidas que virão, porque “já é hora de termos uma legislação progressista que garanta o direito à vida de todos e ajude os mais fracos”. Por outro lado, a Maré Violeta se coloca contra a “ofensiva patriarcal dos governos conservadores”, que, segundo seu manifesto, reduziu os fundos destinados a políticas de igualdade entre homens e mulheres.

Com isso, foram eliminadas as subvenções destinadas a centros de atendimento de mulheres e “desmantelado” o Instituto da Mulher, o que representa uma “violenta agressão aos avanços obtidos durante a democracia”, denuncia a organização. Pineda contou que “outras das lutas” são a lei de promoção da autonomia pessoal e atenção às pessoas em situação de dependência e às famílias, que beneficia muitas mulheres por serem elas fundamentalmente as que se dedicam ao cuidado. O governo suspendeu por um ano a incorporação de novas categorias de beneficiários à também chamada lei de dependência, que financia os serviços de que necessitam as pessoas por terem uma doença, sofrerem um acidente ou chegarem à velhice.

Em entrevista dada no dia 8, na rádio estatal, a vice-secretária-geral do opositor Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), Elena Valenciano, afirmou que a revisão de leis com a do aborto significa “um retrocesso de 30 anos ou vários séculos”. Estas mudanças farão com que “a sociedade espanhola se torne mais retrógrada do que é na realidade, só pela ideologia do governo”, afirmou. Outra das leis que o governo pretende modificar é a do casamento entre pessoas do mesmo sexo, aprovada em 2005, e contra a qual se apelou ao Tribunal Constitucional. A mudança ou revogação desta lei “seria um erro de proporções colossais”, disse à IPS a ex-diretora da Federação Estatal de Lésbicas, Gays, Transexuais e Bissexuais, Beatriz Gimeno.

Rajoy, que desde 21 de dezembro governa com maioria absoluta nas duas casas legislativas, costuma dizer que sua discordância com a lei do casamento homossexual está apenas no nome e que prefere o termo “união”. Para Gimeno, tanto a revogação da lei como a mudança de denominação suporia “uma situação de desigualdade” entre as pessoas que já contraíram matrimônio e as que quiserem se casar depois. Alertou sobre os “efeitos simbólicos e sociais” negativos da variação do nome. “Somente os regimes fascistas, como o de Francisco Franco (ditador de 1939 a 1975) revisaram o estado civil das famílias”, recordou a escritora.

Outra mudança anunciada é a substituição da “Educação para a Cidadania”, aprovada por Decreto Real em 2006, por uma educação cívica e constitucional que elimina “questões controversas e suscetíveis de doutrinamento ideológico”, disse o ministro da Educação, José Ignacio Wert. Pilar Iglesias, professora e integrante da equipe coordenadora da Maré Violeta, declarou à IPS que a mudança da matéria de estudo pode supor uma “censura” de conteúdos, enquanto os bispos católicos espanhóis e entidades como Profissionais pela Ética e a Confederação Espanhola de Centros de Ensino aplaudem a notícia.

A educação para a cidadania, desenhada pelo parlamento com base na Lei Orgânica da Educação, cumpre uma recomendação do Conselho da Europa de 2002, mas “contém questões opinativas que não podem ser impostas aos alunos, e não deve ser uma ferramenta nas mãos dos governos”, explicou à IPS um porta-voz da organização Profissionais pela Ética. Seria suprimido todo o texto que não se refira a conhecimento da Constituição e das instituições democráticas da sociedade e da União Europeia, anulando, por exemplo, os capítulos que falam das relações interpessoais e humanas que apresentam de modo sutil a diversidade afetivo-sexual e familiar.

“Estas reformas pretendem contentar os setores mais reacionários do governante Partido Popular”, alertou Gimeno, que acredita que, se forem concretizadas, “colocarão a Espanha no nível dos países menos avançados e democráticos”. Outros anúncios, como a instauração da “pena de prisão permanente revisável” para “crimes de grande alarme social”, são questionados por entidades como a Associação Pró-Direitos Humanos de Andaluzia, que tachou a decisão de “populista” e afirmou em nota que o endurecimento das penas “não serve para reduzir a criminalidade”.

Diversas vozes apontam “o motivo político” destes anúncios do governo e argumentam que a intenção é satisfazer o setor mais conservador do partido e desviar a atenção da grave crise econômica que afeta o país e que mantém no desemprego mais de 22% da população economicamente ativa e 50% de seus jovens.

Rajoy enfrenta águas bem revoltas. Sindicatos, professores, alunos e pais de estudantes há meses protestam contra os cortes na educação não universitária na comunidade de Madri. Por seu lado, a Maré Branca, integrada por trabalhadores da Saúde, critica as modificações de suas condições de trabalho e a perda salarial, enquanto o sindicato dos bibliotecários, unidos na Maré Amarela, protesta pelas reduções nas bibliotecas públicas espanholas. Envolverde/IPS