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Dividido pelo casamento precoce

Casablanca, Marrocos, 7/5/2012 – A prática generalizada de entregar meninas e adolescentes em casamento continua sendo uma das questões políticas e legais mais delicadas no Marrocos, que coloca frente a frente islâmicos de linha dura com moderados em todo o país. Mohammad Abdenabawi, funcionário do Ministério da Justiça, disse na televisão nacional que 30 mil menores estão casadas, o equivalente a 10% do total de matrimônios realizados este ano neste país de 32 milhões de habitantes.

As consequências do fenômeno são graves para adolescentes e mulheres jovens, apesar dos esforços da sociedade civil para mudar a situação. Porém, é difícil manter a luta diante de uma onda de conservadorismo cultural e religioso. A campanha para reunir um milhão de assinaturas para proibir o casamento precoce ganhou maior força devido ao trágico fato ocorrido com Amina Filali, de 15 anos, que se suicidou após ser obrigada a se casar com o homem que a violentara.

Para proteger a “honra” da jovem e da família, a justiça se baseou em leis do Código Penal e de Família para obrigar Filali a se casar com esse homem, dez anos mais velho, que violentou a menina ameaçando com uma navalha. A decisão do tribunal e o suicídio de Filali desataram um forte debate público e mobilizações sobre este assunto, tabu na tradicional sociedade marroquina.

Segundo Jamal Rhmani, membro da opositora União Socialista de Forças Populares e ex-ministro do Emprego, a campanha já conseguiu mais de 780 mil assinaturas. Apesar de sua atividade política e de ser um dos promotores da campanha contra o casamento precoce, Rhmani esclareceu à IPS que sua participação se deve primeiro, e principalmente, ao fato de ser pai de uma jovem de 14 anos. “Antes de ser político, sou pai. Não podemos ficar indiferentes ao que acontece à nossa volta”, declarou.

Ativistas e integrantes da oposição pedem a revogação do Artigo 475 do Código Penal, que permite que o violador saia impune se concordar em se casar com a vítima. Também estão contra os Artigos 20 e 21 do Código de Família, que habilita o casamento de menores de idade. Contudo, este é um problema com raízes profundas e exigirá uma mudança mais sistemática do que a revogação de umas poucas leis.

“A culpa é de uma jurisprudência arcaica implantada por incultos”, disse à IPS o ativista Chakib Khettou, morador em Casablanca, referindo-se à lei islâmica que permite o casamento de meninas a partir dos nove anos de idade.

Em 2008, o erudito muçulmano xeque Mohammad el Maghrawi publicou uma fatwa (decreto religioso) reiterando o direito de as famílias casarem suas filhas com mais de nove anos. O fato causou um escândalo, mas sem consequências para ele, que em uma entrevista coletiva em abril defendeu sua posição “com base no Alcorão e nas palavras do profeta”, afirmou. Ahmed Faridi, professor especializado na shariá (lei islâmica), declarou à IPS que “não há nada no Alcorão que permita o casamento de uma menina de nove anos”. Porém, Maomé se casou com uma menor, “nesse caso é uma exceção e não a regra”, insistiu.

“O casamento de meninas e adolescentes não está proibido pela lei”, informou, por sua vez o ministro de Justiça e Liberdades, Mustapha Ramid, em um discurso transmitido pela televisão nacional em março. Advogado de profissão, Ramid “é tolerante” quanto a reformar o Artigo 475 do Código Penal, mas negou-se a falar sobre os Artigos 20 e 21 do Código de Família. Deu a entender que poderia haver manifestações semelhantes às provocadas pelo Plano Nacional para a Integração das Mulheres no Desenvolvimento, proposto pelo governo de Abderrahmane Youssoufi, em 1999.

Naquela ocasião, milhares de muçulmanos do governante Partido da Justiça e do Desenvolvimento protestaram em Casablanca contra o plano de Youssoufi porque consideraram que era “incompatível” com a shariá, pois proibia a poligamia e fixava em 18 anos a idade mínima para as mulheres poderem se casar. Porém, os atuais parlamentares não temem que os setores conservadores reajam com a veemência de então. “É preciso um debate nacional sobre o tema para reformar o Código Penal e o Código de Família. Os parlamentares socialistas têm um projeto para garantir a proteção de meninas menores de idade”, destacou Rhmani.

A câmara baixa do parlamento analisou o assunto na última semana de abril, e o presidente da Câmara de Conselheiros (câmara alta), Mohammad Cheikh Biadillah, disse que as reformas propostas não podem contrariar o “espírito da nova Constituição”, adotada em plena Primavera Árabe e que obriga o “Estado a garantir os direitos sociais e econômicos da família, a proteger os menores sem importar sua posição social ou familiar, e que proíbe todo tipo de discriminação por questão de gênero”. “O Poder Legislativo tem a obrigação de intervir cada vez que detecta que uma lei ficou incompatível com o desenvolvimento da sociedade. Todas as leis que atentam contra a dignidade das mulheres devem ser revistas ou revogadas”, concluiu. Envolverde/IPS