O Movimento Cittaslow (Cidadades Lentas), a mais revolucionária proposta de desenvolvimento urbano sustentável, nasceu numa mesa de bar. Mais específicamente, na mesa de um restaurante de Greve in Chianti, pequena comunidade no coração da Toscana, Itália, na qual o então prefeito Paolo Saturnini almoçava com amigos. O ano era 1999 e a idéia surgiu como uma solução simples para um problema que todas as comunidades enfrentam – conciliar desenvolvimento com qualidade de vida. Hoje, menos de 13 anos depois, já está sendo aplicado em cerca de 150 cidades de 25 países.
O Movimento Cittaslow propõe a melhora da qualidade de vida dos cidadãos a partir de propostas vinculadas ao território, ao meio ambiente, ao respeito cultural e ao uso de novas tecnologias usando como “arma” o protagonismo comunitário. Simples na concepção, nasceu inspirada no Movimento Slow Food e se propaga em cidades pequenas, evitando que cometam os mesmos erros das cidades que crescem sem controle. Como diz Saturnini, cidades pequenas devem preservar; cidades grandes precisam revolucionar – e não sabem como. O Brasil tem 5.017 municípios com menos de 50.000 habitantes e pode criar centenas de Cidades Lentas salvando do caos urbano 65,2 milhões de brasileiros. Esta reportagem procura mostrar o caminho. Para saber mais acesse http://www.cittaslow.org
No fim de abril em um jantar deliciosamente “lento” de quase 3 horas no restaurante La Piazza Del Vino, em Florença, na Itália, acompanhado da mulher Marisa e rodeado por mais de 3.000 garrafas de vinho, Paolo Saturnini me concedeu esta entrevista exclusiva sobre a gênese e o desenvolvimento do Movimento Cittaslow,.
Ruschel: Como nasceu a proposta de Cittaslow?
Paolo: A ideia nasceu em 1999, logo após o Congresso Mundial do Slow Food em Orvieto, na Itália, do qual eu havia participado. Como prefeito estava preocupado para resolver um dilema: como permitir que Greve in Chianti pudesse continuar a receber cada vez mais turistas sem perder a identidade e seus valores culturais, parte fundamental do que atraía os turistas, e ao mesmo tempo compartilhar os benefícios para toda a comunidade, e não apenas para alguns poucos? E melhorar a qualidade do produto turístico, a solução de qualquer destino turístico sob pressão de volume, não era possível, porque nosso turismo já era de alta qualidade.
Foi quando tive a idéia de expandir o conceito de “lentidão” proposto pelo movimento Slow Food – focado na qualidade, integridade e prazer do que se come – para a cidade inteira. Afinal, nas casas de Greve comemos sempre com prazer e alegria e o vinho – talvez o mais poderoso ícone da “slow food” – é parte quotidiana de nossos hábitos alimentares. Na verdade, pensei inicialmente na possibilidade de estender o princípio da “lentidão” também para outras coisas além da comida, e com isso sensibilizar pessoas que ainda não tinham abraçado a causa do Slow Food. Pensei que se tivesse o apoio de prefeitos e instituições municipais que representam dezenas de milhares de homens e mulheres, poderia facilitar a implementação dos objetivos do movimento Slow Food mais rapidamente. Parecia uma boa ideia: bastava pedir aos políticos, em primeiro lugar, mas também para as pessoas da cidade como um todo, um ato de vontade: a vontade de ser parte de um projeto estratégico importante, o projeto do Slow Food.
Ruschel: Como são as relações da Cittaslow com o Slow Food?
Paolo: As organizações estão intimamente relacionadas, no sentido de que Cittaslow faz parte do Slow Food através de um representante nacional, e o presidente da Cittaslow faz parte do Conselho de Governadores do Slow Food na Itália.
Ruschel: Quem foram os promotores iniciais da ideia?
Paolo: O Município de Greve in Chianti, juntamente com as cidades de Orvieto, Bra, Positano e com o Movimento Slow Food.
Ruschel: Qual a ideia básica do Movimento Cittaslow?
Paolo: O objetivo é melhorar a qualidade de vida dos cidadãos a partir de propostas vinculadas ao território, ao meio ambiente, ao protagonismo comunitário e ao uso de novas tecnologias. O inimigo é o estresse, a pressão de valores não naturais, a perda de referências, a pressa. Tudo isto gera má qualidade de vida. Em pequenas comunidades como Greve in Chianti as pessoas estão vinculadas ao território: elas nascem, crescem, moram e trabalham em fazendas, casas, ruas e bairros. Conhecem cada árvore, cada casa. Vivem no território do município, um espaço que deve ser seu e que deve ser fonte de harmonia e prosperidade. E este ambiente deve ser respeitado e valorizado, e não envenenado como é a tendência no que se refere ao meio ambiente. Queremos valorizar o território e não apenas ocupá-lo.
Ruschel: E como esta “valorização do território” se manifesta na prática?
Paolo: Para aderir à rede, os municípios candidatos devem ter até 50.000 habitantes e atender a diversos compromissos, entre os quais:
A política de planejamento deve servir para melhorar o território, e não apenas para ocupá-lo
Devem implementar uma política ambiental baseada na promoção da recuperação e reciclagem de resíduos, quando não for possível evitá-los
Devem usar os avanços tecnológicos para melhorar a qualidade ambiental e de áreas urbanas
Devem promover a produção e utilização de produtos alimentícios obtidos de maneira natural e ambientalmente respeitosos, excluindo os produtos transgênicos
Devem entender que o fortalecimento da produção local deve estar ligada ao território: agricultores e moradores tradicionais devem preservar suas mais antigas tradições, mesmo quando é incentivado o relacionamento entre consumidores e produtores
Devem implementar, quando necessário, políticas e serviços públicos de defesa de grupos geralmente excluídos
Devem promover a hospitalidade respeitosa e a convivência harmoniosa entre os moradores e turistas, sem exploração, mas com valorização
Devem mobilizar e educar a consciência dos residentes e dos operadores turísticos sobre o que significa viver em uma cidade lenta e suas implicações, com especial atenção para a sensibilização dos jovens, através de planos de formação específicos.
Ruschel: Você pode dar exemplos práticos?
Paolo: Sim, posso dar alguns exemplos do que foi conquistado em Greve in Chianti.
Um está relacionada ao planejamento urbano, onde, para assegurar o desenvolvimento sustentável na minha comunidade, reduzimos drásticamente a previsão de novos edifícios, tanto residenciais como para atividades produtivas. Reduzimos o limite de 250.000 metros cúbicos construtivos de leis anteriores e aprovamos um novo plano diretor que colocou em primeiro lugar o aproveitamento das áreas existentes, e apenas como último recurso, a construção de um novo edifício. Outro exemplo é o do comércio, onde, como em qualquer cidade você tem lojas com áreas de auto-atendimento, mas o morador prefere o comércio tradicional, contribuindo para a preservação de uma importante base econômica, social e cultural. Outro exemplo é o do turismo, onde, em face de forte crescimento da demanda, incentivamos o surgimento de pequenos hotéis derivados da reutilização de edifícios existentes, em vez de recorrer à construção de complexos hoteleiros de grande porte. Também associamos a qualidade e a origem de alimentos produzidos localmente à educação, educação alimentar e educação ambiental, incentivando o uso de merendas ligadas ao território e à cultura. Um último exemplo é o da paisagem agrícola, onde, com o apoio de enólogos, adotamos padrões e práticas para a criação de novos vinhedos com técnicas mais respeitosas em relação ao solo e a paisagem.
Ruschel: Ser uma Cittaslow é viável só para cidades pequenas?
Paolo: É mais adequado para cidades pequenas, para evitar que cometam os mesmos erros das cidades que cresceram sem controle. Cidades pequenas devem preservar; cidades grandes precisam revolucionar – e não sabem como. Cidades grandes têm mais de uma alma: de culinária, de transporte, de energia, etc e porisso têm que fazer mudanças por bairros, por setores. Quem mora em cidades grandes, pode perder a noção de território, de pertinência e de tempo. Atualmente os estatutos da Cittaslow só aceitam cidades associadas com até 50.000 habitantes. Talvez este limite seja revisado na medida em que o movimento se amplie. (Nota do repórter: para se tornar uma Cittaslow, a cidade candidata tem que pagar 600 Euros de taxa de inscrição, receber a visita de auditores e promover uma reunião da qual participem pelo menos 3 municípios associados da rede. Feito isso, deve aceitar os termos dos Estatutos da associação e se comprometer com políticas públicas que ajudem a criar um ambiente propício para atingir os objetivos).
Ruschel: Como funciona o projeto Cittaslow?
Paolo: Este é um projeto “em andamento” no sentido de que ele cresce por etapas, quer através do aumento do número de cidades participantes, quer pela aplicação e realização dos objetivos de Cittaslow nas cidades. Quando você se torna uma Cittaslow você tem certos requisitos; com o tempo não só esses requisitos devem ser mantidos – e na medida do possível melhorados – mas também deve lutar para viabilizar outros requisitos que ainda não tinha no momento de reconhecimento.
Ruschel: Como foi implantado em Greve in Chianti, quais as dificuldades?
Paolo: Primeiro explicamos os objetivos e debatemos publicamente sobre o que poderia surgir de positivo ou negativo. Criado um ambiente receptivo, começamos a discutir legislações relacionadas a assuntos de interesse coletivo como meio ambiente, energia limpa e mobilidade. Geve in Chianti tinha uma comunidade de imigrantes árabes, que têm outra cultura, e mesmo assim deu certo, porque não existiam diferenças econômicas gritantes. Seguimos nosso ditado “chi va piano va sano e va lontano” (em tradução livre, devagar se vai ao longe)
Ruschel: O movimento está em 25 países, inclusive em vários com culturas diferentes da européia como China, Estados Unidos, Nova Zelândia, Coréia do Sul e África do Sul. Como é feita a mobilização para a candidatura, quem entra com o pedido, como se comportam os políticos?
Paolo: Pode ser proposto por políticos, mas na maioria das vezes é um movimento que nasce na base, nas ruas, liderado ou proposto por intelectuais da comunidade. Foi o caso da Coréia do Sul, da qual fui o padrinho. Acho que a internet atualmente permite esta mobilização em escala mais rápida. Mas a proposta só pode vingar se tiver o apoio do poder público, e isto pode dificultar. Alguns políticos percebem a oportunidade de visibilidade, e dependendo da mobilização, o prefeito e os vereadores acabam aderindo ao protagonismo comunitário, mesmo que não tenham muito desejo lá no íntimo. E tem outra questão: a dos partidos políticos, que é muito sério aqui na Itália. Geralmente os prefeitos não querem continuar ideias do antecessor, então as propostas mais bem sucedidas são as que conseguem suplantar isto. No meu caso em Greve in Chianti, quando como prefeito eu comecei a falar sobre Cittaslow, encontrei uma adesão significativa de todos os partidos políticos, inclusive da oposição, e isso facilitou a tarefa. Outro segredo do sucesso é que é preciso reconhecer o papel e importância das forças econômicas e sociais, e suas demandas precisam ser contempladas. No Brasil ainda não temos nenhuma Cidade Lenta; você não quer levar o movimento para lá? (Nota do repórter: a cidade de Tiradentes, de Minas Gerais, iniciou um processo de associação que foi interrompido, mas Paolo acha que será retomado).
Ruschel: Existem outras iniciativas similares?
Paolo: Sim, existem outras iniciativas. A maioria dos municípios participantes do Cittaslow também faz parte de outras associações como, por exemplo, associações de “identidade da cidade” (cidade do vinho da cidade, pão, cidade Querida, cidades floridas, etc.) que realizam políticas e objetivos similares aos da Cittaslow. Muitas cidades também acompanham regularmente as atividades do Slow Food, ou Legambiente ou Symbola, organizações que têm uma origem comum com Cittaslow na defesa do meio ambiente, e na qualidade dos produtos locais. (Nota do repórter: No Brasil outros movimentos similares são Cidades Sustentáveis e Transition Towns – de âmbito nacional – e movimentos do tipo Nossa CidadeTal, Observatório da CidadeTal).
Saiba mais
O berço da Cittaslow
Greve in Chianti é uma pequena comunidade de menos de 15.000 habitantes a 30 quilometros de Florença, no coração da Toscana. Provavelmente existe antes dos etruscos e dos romanos dominarem a área; os registros mais antigos são do século XI. A economia local está baseada na exportação de óleo de oliva extra virgem e vinhos chiantis e super-toscanos e importação de turistas. A cidade abriga atrações como a Igreja Santa Croce (século XI), uma casa que foi de Américo Vespúcio, um mosteiro Franciscano do século XIV e o castelo de Verrazzano construído pelos Lombardos no século XIII, entre outras obras. Atraídos pela beleza e charme da região e por festivais de vinho, festa das flores, feiras de antiguidades e uma feira semanal de produtos típicos na Piazza Matteotti, a principal da cidade, os turistas que visitam Greve in Chianti podem se deliciar com uma gastronomia de alta qualidade que inclui trufas, porcos Cinta Senese e veados selvagens – todos de produção local.
Por todas estas razões, ter uma propriedade na região se tornou o objeto do desejo de bem resolvidos e ricos do mundo inteiro que compram propriedades idílicas como as famosas vilas toscanas, pequenos castelos e propriedades rurais centenárias com áreas de produção de azeite e vinho. Compram e não podem modificar um único tijolo. Em 2010 a revista norte-americana Forbes a nomeou a primeira da lista de “Europe’s Most Idyllic Places To Live.”
Mas Greve in Chianti prospera de um jeito diferente, controlado. Nos anos 80 a cidade já começava a ter problemas de perda de identidade por causa do volume de turistas. Como enfrentar o desafio de atender turistas em maior volume do que podia sem se descaracterizar? A solução convencional no turismo nestes casos é buscar a qualidade, mas a comunidade já oferecia isto. Foi quando o então prefeito Paolo Saturnini propôs uma idéia simples: a associação do conceito de “slow food” para a cidade inteira, um conceito que se materializou no Movimento Cittaslow.
O pai da Cittaslow
Paolo Saturnini tem 59 anos e não terminou o curso de Administração. Nasceu e sempre viveu em Greve in Chianti, onde atualmente é empresário do setor imobiliário. Foi prefeito (sindaco) entre 1995 e 2004, re-eleito duas vezes, o máximo que a legislação italiana permite. Foi mentor e primeiro presidente do Movimento Cittaslow e atualmente é presidente honorário e presidente do Conselho Garantidor de Qualidade da organização. Faz palestras sobre o tema em vários países e freqüenta os eventos internacionais do movimento. Não pretende fazer carreira política. Prefere se dedicar à enogastronomia: é autor dos livros “Vini da mangiare”, com 200 receitas de uso do vinho na culinária, e “Giallo in cucina”, sobre o uso do açafrão, em parceria com Marco Mazzoni, produtor de açafrão há mais de 20 anos. É autor também de um livro que registra sua percepção sobre Greve in Chianti e as memórias do nascimento do Movimento Cittaslow: “L’armonia Del Chianti – riflessioni su una terra in bilico” (em tradução livre, “A harmonia de Chianti – reflexões sobre uma terra em equilíbrio”). Foi também presidente nacional da Associazzione Cittá Del Vino, que reúne todas as cidades italianas que produzem vinhos. Evidentemente Paolo sabe tudo sobre vinhos, especialmente chiantis. E é um excelente companheiro para um jantar lento, delicioso e culturalmente enriquecedor.
Slow Food: a inspiração
O Movimento Slow Food foi criado em 1986 pelo italiano Carlo Petrini e se transformou em uma organização internacional atualmente com 100.000 sócios de 150 países que promove a eco-gastronomia, a educação alimentar, alimentos sustentáveis e a agricultura de base local. O princípio é simples: a forma como nos alimentamos tem profunda influência no que nos rodeia – na paisagem, na biodiversidade da terra e nas suas tradições.
Com sede na cidade de Bra, na Itália, o Slow Food opera tanto localmente (em parcerias como com a Terra Madre, encontro internacional de comunidades do alimento que trabalham pela sustentabilidade de seus produtos alimentares, e com a Fundação Slow Food para a Biodiversidade, braço científico do movimento), como globalmente, em parceria com instituições como a FAO – Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação.
No Brasil o movimento mantém 8 Fortalezas (projetos que defendem produtos ou modos produtivos agrícolas específicos de um local), inseriu 24 produtos brasileiros na Arca do Gosto (catálogo mundial de sabores quase esquecidos de produtos ameaçados de extinção) e desde 2004 tem um convênio com o o Ministério do Desenvolvimento Agrário para desenvolvimento de projetos. Veja mais em http://www.slowfoodbrasil.com O Movimento Cittaslow herdou não só os princípios, mas também o logotipo Movimento Slow Food, colocando casinhas nas costas do caracol.
* Rogério Ruschel – [email protected] – é jornalista especializado e editor da revista eletrônica “Business do Bem – Economia, Negócios e Sustentabilidade”.
** Publicado originalmente no site Ruchel e Associados.