Arquivo

Irmandade Muçulmana ganha, militares do Egito se impõem

Seguidores do presidente do Egito, Mohammad Morsi, protestam na Praça Tahrir, no Cairo, contra a dissolução do parlamento. Foto: Khaled Moussa al-Omrani/IPS

 

Cairo, Egito, 17/7/2012 – O quase governante conselho militar do Egito sai vitorioso do primeiro grande confronto com o novo presidente islâmico, referente a quem exerce a autoridade legislativa. “A Irmandade Muçulmana e seus aliados podem ter se imposto nas eleições parlamentares do ano passado, mas o Poder Legislativo permanece sob controle do exército”, disse à IPS o analista político Magdi Sherif, chefe do Partido dos Guardiões da Revolução, fundado durante o levante de 2011 na Praça Tahrir. “E os últimos acontecimentos arrastaram para o conflito também o Poder Judiciário”, acrescentou.

No dia 8 deste mês, o primeiro presidente eleito em eleições livres neste país, Mohammad Morsi, uma personalidade notável da Irmandade Muçulmana, baixou um decreto executivo convocado reunião dos membros da Assembleia Popular, a câmara baixa do parlamento. O decreto também convocava novas eleições parlamentares para 60 dias depois de um referendo aprovando o texto de uma nova Constituição.

Contudo, no dia 10, o Tribunal Constitucional “suspendeu” o decreto de Morsi com base em uma sentença própria e anterior, que estabelece a dissolução da câmara baixa. O tribunal chegou a afirmar que suas decisões eram “finais” e “irreversíveis”. No dia seguinte, Morsi voltou atrás. Prometeu cumprir a decisão judicial e afirmou que a Presidência “respeita o Tribunal Constitucional, seus magistrados e todas as decisões que a justiça do Egito tomar”.

O decreto de Morsi, uma de suas medidas mais importantes como novo presidente, foi surpreendente. Não só se contrapunha a uma decisão do Tribunal Constitucional como também a uma ordem do conselho militar. A batalha pela primazia legislativa começou em meados de junho, quando o Tribunal decidiu que as normas que regeram as eleições legislativas do ano passado, e que deram uma categórica vitória à Irmandade Muçulmana e aos seus aliados islâmicos, violaram a Carta Magna.

No dia seguinte, o conselho militar ordenou a dissolução da câmara baixa do parlamento, onde quase metade das cadeiras estava em poder do Partido da Justiça e da Liberdade, braço político da Irmandade Muçulmana. Muitos especialistas em direito questionam a legitimidade de semelhante ordem. “A decisão do Tribunal não apresentou nenhum argumento legal para dissolver toda a assembleia”, disse à IPS o professor de direito constitucional da Universidade do Cairo, Atef al-Banna. “O Tribunal apenas encontrou questionável um terço das cadeiras, as reservadas para independentes, mas que foram ganhas por candidatos partidários”, completou.

Quando Morsi, abruptamente, ordenou que a Assembleia Popular voltasse a se reunir, dirigentes da Irmandade Muçulmana disseram que se tratava de um “reflexo da vontade popular”. A decisão foi tomada “por respeito aos mais de 30 milhões de egípcios que votaram nas eleições parlamentares”, declarou um dos líderes do Partido da Justiça e da Liberdade. Autoridades e especialistas em direito constitucional discordam entre si sobre a legalidade e constitucionalidade do decreto de Morsi.

“Expedir decretos cabe ao mandatário. O Presidente da República tem autoridade para convocar a Assembleia Popular quando julgar conveniente”, afirmou à IPS o professor de direito constitucional da Universidade do Cairo, Sarwat Badawi. Em sua opinião, ilegal foi a ordem inicial do conselho militar, “pois não foi expedida por nenhuma autoridade legítima”. Esse órgão das forças armadas “não tem faculdades legais para decidir pela dissolução do parlamento”, ressaltou.

“O Tribunal Constitucional, por sua vez, tem apenas o mandato de decidir se algo é, ou não, constitucional. Expedir recomendações sobre como deveriam ser implementadas suas decisões, tal como fez quando ordenou a dissolução do parlamento, está fora de suas atribuições”, pontuou o professor.

Mohammad Hamed al-Gamal, ex-presidente do Conselho de Estado, e máxima autoridade em matéria de disputas entre o público e os órgãos estatais, discorda energicamente. “A decisão de Morsi não tinha fundamento, constitucional e estava fora de sua autoridade”, declarou Gamal à IPS. “E mais, se contrapunha diretamente tanto à decisão do Tribunal como ao apêndice institucional”. Gamal se referia a uma reforma de 17 de junho decidida pelo conselho militar, dias após a decisão inicial do Tribunal Constitucional e do segundo turno das disputadas eleições presidenciais do mês passado.

Essa polêmica reforma constitucional ampliou notavelmente os poderes do conselho militar à custa do parlamento e da Presidência, órgãos democraticamente eleitos. Além de transferir a autoridade legislativa da dissolvida Assembleia Popular para o conselho militar, o apêndice também deu aos chefes das forças armadas várias prerrogativas executivas, entre elas, nada menos, o direito de declarar a guerra.

“Segundo o apêndice, o presidente compartilha as faculdades executivas com o conselho militar”, explicou à IPS o analista político Abdullah al-Sennawi. É, “nada mais, nada menos, do que um golpe de Estado suave contra a transição democrática do Egito pós-revolucionário”. Para alguns, o recuo de Morsi em relação ao seu decreto da semana passada é uma decisão estratégica. A Presidência, e por extensão a Irmandade Muçulmana, estão reunindo forças para o objetivo fundamental: revogar o apêndice constitucional.

“O retrocesso de Morsi sugere que seu decreto foi um balão de ensaio para medir o poder da Presidência frente ao conselho militar”, afirmou Sherif. “Se a medida permanecesse intacta e se permitisse ao parlamento se reunir, o mandatário poderia dar mais passos para consolidar seu poder com o propósito final de derrubar o apêndice e restringir o papel político que têm os militares”, observou. Entretanto, os seguidores do presidente voltaram a se manifestar na emblemática Praça Tahrir desde meados de junho, em quantidades variáveis, protestando contra a dissolução da Assembleia Popular e contra o apêndice constitucional.

Muitos denunciaram também o Poder Judiciário como “politizado” e “repleto de membros” do extinto regime de Hosni Mubarak (1981-2011). “As últimas decisões do Tribunal Constitucional confirmam que o Judiciário, como a maioria das instituições do Estado, segue cheio de leais a Mubarak com planos contrarrevolucionários”, denunciou, da Praça Tahrir, o político Mohammad Aweida, dirigente do ainda não legalizado Partido da Unidade Árabe.

“A percepção de que as decisões do Tribunal estão sendo usadas com fins políticos tem base”, apontou Sherif. Basta considerar “a assombrosa oportunidade de seu veredito inicial para dissolver o parlamento, expedido apenas dias antes do segundo turno presidencial”, indicou. E mais, “o Tribunal demorou apenas 45 dias para chegar a um veredito, quando as decisões sobre grandes questionamentos constitucionais costumam demorar anos”, ressaltou. Envolverde/IPS