A greve nas universidades federais, que já dura quase 60 dias, coloca um conjunto de desafios tanto para os professores quanto para o governo federal quando é levada em conta a constituição de um sistema universitário público, inclusivo e capaz de produzir conhecimento de forma acelerada.

Foto: Gustavo Moreno/D. A. Press

O Brasil foi o único país da América Latina capaz de associar qualidade no ensino de graduação e pós-graduação com a manutenção de um estrutura pública de ensino. Diferentemente dos outros países da América Latina, o autoritarismo não desestruturou o sistema de ensino público, pelo contrário investiu na sua ampliação.

E mesmo o neoliberalismo não foi capaz de deestruturar o sistema federal de ensino e pesquisa existente no país (apensar de algumas políticas do governo FHC terem apontado nesta direção, como o incentivo as aposentadoria e o arrocho salarial entre 1994-1998).

Algumas características do estado e do sistema federal de ensino explicam esta resiliência entre as quais valeria a pena destacar: o capital privado no Brasil nunca fez investimentos significativos na área da educação e a qualidade do sistema público de ensino superior é mais elevado do que a do sistema privado; o governo realizou investimentos em pós-graduação que se mostraram eficientes e o país galgou importantes posições no ranking internacional de papers publicados tendo a sua pós-graduação (fundamentalmente pública) entre as dez principais do mundo; em terceiro lugar e muito importante, no processo de desestruturação do estado brasileiro que ocorreu entre 1980 e 2002 as universidades federais permaneceram estáveis com pouca influência do sistema político e com uma forma democrática de indicação dos seus dirigentes que a diferenciaram de outras instituições do governo e ofereceram continuidade nos seus planos de gestão.

No entanto, dois déficits foram sendo gerados ao longo dos últimos 20 anos e se colocam na raiz do enfrentamento entre professores universitários e governo. O primeiro deles foi um déficit de inclusão social. O Brasil desenvolveu um sistema público que exigiu o investimento de recursos vultosos por parte do Estado, mas que não desempenhava, até o começo da década passada, quase nenhum papel na ascensão social dos setores mais pobres e nem no acesso de setores historicamente excluídos (como a população negra) no ensino superior.

Pesquisa sobre o acesso da população negra ao ensino superior na década de 90 mostrava índices semelhantes aos dos Estados Unidos no começo dos anos 50. Assim, se colocou no começo dos anos 2000 a questão urgente da democratização do acesso ao ensino superior. Em segundo lugar, a questão de uma carreira salarial se coloca para os professores universitários desde, pelo menos, a metade dos anos 80. O perfil dos professores universitários mudou rapidamente com a carreira estruturada entre a categoria de auxiliar e titular deixando de fazer sentido para a maior parte das universidades há mais de uma década.

Tomemos como exemplo, a universidade na qual eu trabalho, a UFMG. Ele tem 80% dos seus professores como doutores, a maior parte deles estagnados na classe de adjuntos, até uma década atrás. Assim, o problema do sistema federal de ensino se situou na interseção entre expansão, democratização e a ampliação da carreira. Este é na verdade o mote da greve atual dos professores.

Antes de abordar as reivindicações e o seu sentido, vale a pena mostrar como o governo Lula identificou e tratou estas questões. O governo Lula herdou um sistema universitário federal praticamente sucateado, no qual o governo federal não havia investido, seja para aumentar o salário dos professores, seja para ampliar a qualidade do sistema.

A única política do governo FHC para as universidades foi a GED, a gratificação de estímulo à docência que fracassou, não porque fosse uma concepção errada, mas devido ao arrocho salarial anterior que não foi recomposto antes da sua implementação.

O governo Lula introduziu quatro políticas para o sistema universitário federal: uma política de recuperação salarial foi iniciada ainda em 2003; uma nova carreira passou a contar com a categoria do professor associado conectada com um aumento do número de vagas para professores titulares, efetivamente criando uma carreira.

Finalmente, com o REUNE e as políticas de ação afirmativa o governo federal conseguiu aumentar o número de estudantes das universidades federais de 113.000 para 227.000. Foram ainda criadas 12 novas universidades federais. Temos, portanto, quatro políticas ativas durante a última década que colaboraram para re-estabelecer uma relação entre o sistema público e privado de ensino superior.

O Brasil tem hoje 112 mil professores universitários (segundo a secretaria de gestão do Ministério do Planejamento) ou 78 mil (segundo o INEP) e em torno de 900 mil  alunos de ensino superior em IFES e 55 universidades federais. É neste contexto que se colocam as questões fundamentais que geraram a atual greve: por um lado, o esforço de ampliação do sistema gerou um sistema muito mais caro e há também uma estagnação do salário, em especial da faixa de professor adjunto. Um professor adjunto ganha hoje 91% do que ganhava ao final da greve de 1998. Os aumentos reais se mantêm apenas para os associados e titulares. É dentro deste quadro que devemos analisar as reivindicações da atual greve dos professores das universidades federais.

Existem quatro reivindicações de peso na atual greve, duas fazem sentido – a ampliação da carreira de professores universitários e a equiparação salarial com algumas carreiras de servidores técnico-científicos – e duas  não fazem o menor sentido: a concessão de ganhos reais para todos os níveis da carreira; e a equiparação da carreira dos professores da ativa com os professores aposentados. Analisemos com maior vagar cada uma das principais reivindicações:

Se tomamos o primeiro dos pontos, a concessão de aumento real para todos os níveis da carreira, percebemos, de saída, aquilo que há de problemático no movimento docente. A ideia de carreira implica justamente que alguns professores aumentem os seus salários pela via da qualificação. Este é o caso da classe de  professor auxiliar que fez sentido no passado, mas não faz sentido hoje, já que não é desejável que uma universidade contrate professores sem qualquer titulação. Também é o caso em muitas universidades da classe de professor assistente. Na verdade, ambas as classes nunca foram desejáveis, mas estavam de acordo com a capacidade de formação do sistema de pós-graduação brasileira nos anos 80 e 90. Hoje, o sistema de pós-graduação no país permite que se contratem pelo menos mestres, mesmo em áreas como a medicina. Assim, não existe nenhum motivo para que as classes mais baixas da carreira tenham aumentos reais. Isto seria um desincentivo para a qualificação docente. Neste sentido, defendemos que os aumentos reais comecem na classe de professor adjunto, para incentivar a qualificação docente. Devemos defender a reposição salarial integral a partir da categoria dos  professores adjuntos, que, segundo alguns cálculos, ganham apenas 91,5% do que ganhavam após a greve de 1998.

A segunda reivindicação é a ampliação da carreira docente. A carreira, tal como foi concebida no começo dos anos 80, privilegiava a formação dos professores, portanto, a obtenção dos títulos de mestrado e doutorado. Visto, retrospectivamente, este foi um ponto muito importante que ajudou na qualificação dos professores das universidades. No entanto, o que está colocado hoje é a ampliação da carreira com uma classe a mais, ou entre professor adjunto e associado ou entre associado e titular, uma ampliação baseada no desempenho e não na formação. Esta nova classe deve concentrar parte fundamental dos ganhos junto com a classe de professores associados inclusive para desvincular os aumentos reais dos ganhos dos professores aposentados. O que nos conduz a terceira reivindicação.

A terceira reivindicação é a equiparação de vencimento da carreira dos professores da ativa com os aposentados. Este é um ponto completamente equivocado seja do ponto de vista de uma política de aposentadoria, seja do ponto de vista de uma política de carreira. O Brasil já tem uma das políticas de aposentadoria mais generosas do mundo. Nenhum país da OCDE tem uma política de aposentadoria integral aos 60 anos como o Brasil tem. Vale lembrar que a maior parte dos aposentados progrediu na carreira no momento da aposentadoria e goza de um valor superior aquele que auferia quando estava na ativa. Não existe nenhum motivo para os aposentados serem contemplados por uma reestruturação da carreira. Pelo contrário, o desejável é a esterilização progressiva de alguns pontos na carreira que oneram o governo sem criar benefícios para os professores universitários da ativa. Neste sentido, uma possível solução para o impasse entre governo e professores universitários seria a diminuição de um ou dois níveis na classe de professor adjunto de maneira a propiciar uma progressão mais rápida dos professores para a classe de professor associado. Esta sim, deveria se beneficiar de aumentos reais, desde que condicionados a índices claros de produtividade.

Vale a pena elaborar o quarto ponto. Os professores universitários pedem a sua equiparação a carreiras similares do estado, seja a carreira de ciência e tecnologia, sejam carreiras como a do IPEA. Esta é uma reivindicação justa no médio prazo, desde que condicionada a formas claras de aferimento da produtividade. As carreiras do estado são carreiras de elite e, envolve, via de regra poucos profissionais, como é o caso do IPEA ou da Fundação Oswaldo Cruz. A contratação destes profissionais é por concursos que exigem alta qualificação. Tudo isto aponta para dois fatos: não devemos conceder aumentos reais para os profissionais que ainda não se qualificaram devemos condicionar os aumentos reais a um misto de qualificação com desempenho por produtividade.

Abaixo proponho o que pode ser uma possível carreira de professor universitário.

Classe de professor auxiliar:

(Extinta)
-professores reclassificados para assistente mas sem gratificação de mestrado

Professor assistente
(mantida)
-Sem aumento real

Professor adjunto
(Mantida com duas classes I e II)
-Recomposição da inflação tomando 1998 (com GED) como base 100

Professor associado
(Mantida com quatro classes)

-Recomposição da inflação tomando o salário do adjunto I em 1998 como base 100.

-Índice de produtividade incidindo sobre o aumento real anualmente.

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Professor livre-docente
(Ascensão por concurso público com banca)

-Recomposição da inflação tomando o salário do adjunto I em 1998 como base 100.

-Índice de produtividade incidindo sobre o aumento real anualmente
Professor titular
(Mantida com uma classe)

-Recomposição da inflação tomando 1998 como base 100

-Índice de produtividade incidindo sobre o aumento real.

Entendo que esta proposta atende à necessidade de aliar democratização com produtividade e excelência. A extinção da classe de auxiliar tem como papel estabelecer condições mais exigentes de entrada no sistema. A ausência de aumento real para professores assistentes tem como objetivo incentivar a aumento salarial através da qualificação e não automaticamente como quer o sindicalismo.

A redução das classes na careira de professor adjunto tem como objetivo propiciar uma progressão mais rápida ainda que não automática para professor associado entre aqueles jovens professores produtivos que recém ingressaram na carreira. Só a partir da classe de professores associados é que devemos pensar em aumentos reais tomando 1998 como base.

Ainda assim defendo que parte dos aumentos reais sejam vinculados ao desempenho. É preciso negar a legitimidade do sindicalismo de propor uma carreira que jogue por terra aquilo que se alcançou nas universidades federais, uma carreira baseada nos títulos e na progressão por mérito. Só assim alinharemos a expansão e a democratização do ensino público com a qualidade que tem sido a marca do sistema federal de graduação e pós-graduação no país.

* Publicado originalmente no site Fórum de Interesse Público e retirado do site Carta Capital.