Damasco Síria,, 31/3/2011 – O panorama político da Síria, hoje palco de maciços protestos, tanto contra quanto a favor do governo, é de longe mais complexo do que o do Egito ou o da Tunísia, onde manifestantes populares acabaram com regimes que estavam há várias décadas no poder. Ontem, policiais à paisana e membros da Moukhabarat, o serviço secreto sírio, vigiavam na capital a Praça dos Sete Mares. Em poucas horas, o lugar de converteu em cenário de uma enorme manifestação de apoio ao presidente Bashar al Assad, que depois fez um discurso na televisão no qual acusou seus opositores de serem parte de um “complô internacional”.
Esta mostra de apoio ao regime ocorreu em reação a uma série de manifestações contra Assad realizadas em todo o país nas últimas semanas. Pelo menos 55 pessoas morreram nas mãos do aparelho de segurança sírio, segundo a Anistia Internacional. Ativistas locais, no entanto, asseguram que passam de cem as vítimas fatais. Em um país onde metade da população parece espiar a outra, os sírios, em geral, são reticentes a revelar suas verdadeiras opiniões.
“Muitos da classe média se sentem frustrados com a situação. Pedem reformas políticas mais amplas”, disse Jihad Yazigi, editor do Syria Report. “Cerca de 11% da população síria vive com menos de US$ 2 por dia”, acrescentou. A localidade de Daraa, onde começaram os protestos, está em uma área rural pobre, açoitada por secas há quatro anos. Inclusive entre empresários de Damasco cresce a frustração com o regime e sua estendida corrupção.
O mais flagrante exemplo de nepotismo é a influente família Makhlouf: como primos maternos do presidente podem controlar todas as empresas do país e ficam com uma parte do bolo. Se não recebem uma porcentagem dos lucros, simplesmente bloqueiam os negócios. “Uma grande empresa internacional de roupas, aberta recentemente em Damasco, foi impedida de funcionar até que aceitasse dar algumas de suas ações a um membro da família no governo”, disse um economista que pediu para não ser identificado.
A lei de emergência também é motivo de insatisfação popular. Em vigor desde 1963, suspendeu de fato a maioria dos direitos constitucionais dos cidadãos. Quase todos os partidos de oposição foram proibidos e a liberdade de imprensa praticamente não existe.
Apesar desta grave situação, muitos sírios ainda parecem apoiar o regime. “A manifestação a favor de Assad registrada ontem é muito diferente da Primavera de Damasco, que era, na essência, um movimento secular”, disse Talal el-Atrache, jornalista e coautor do livro “Quando a Síria Despertar”. A Primavera de Damasco foi um movimento de debate político e social, iniciado com a morte do presidente Hafez al-Assad em 2000. Mas foi sufocado pelo governo com uma onda de prisões.
O presidente goza hoje de certo nível de apoio por razões mais ou menos honrosas, disse Karim Emile Bitar, do Instituto para Relações Internacionais e Estratégicas (Iris), com sede em Paris. “Muitos sírios apreciam o fato de o país ser menos servil aos interesses dos Estados Unidos e de outros regimes árabes (em termos de política externa). E o presidente é apoiado por vários membros de sua própria comunidade alauí”, acrescentou. Ao mesmo tempo, outras minorias, como os cristãos e os drusos, creem que o regime é a única linha de defesa contra o fundamentalismo sunita.
“Também existe o temor de que, se a instabilidade prevalecer, a Síria se aproxime de uma situação parecida com a do Líbano”, país dividido por diversas facções religiosas, disse Talal. Dentro da comunidade muçulmana sunita, muitos acusam pelos problemas os assessores do presidente, e não este, a quem eximem de culpa dizendo que seu poder, na realidade, está restringido à política externa.
Segundo Karim, se Assad deseja salvar seu regime, deve introduzir regras para responsabilizar os membros do governo e adotar reformas radicais apesar de desagradarem os membros de sua própria família. “Refiro-me especificamente a uma potencial demissão de alguns poucos oficiais de segurança que estão relacionados com o presidente e às reformas econômicas que terão impacto nos interesses comerciais da família Makhlouf”, acrescentou. “Ainda falta ver se Assad decidirá romper esses laços e sacrificar os interesses de influentes membros da família. Se o fizer, poderá recuperar certo apoio popular”, afirmou.
Entretanto, a recente repressão aos opositores deixou poucas esperanças de uma verdadeira mudança, e o discurso do presidente, ontem, foi outro golpe para os que desejam uma transformação política. Assad atribuiu a instabilidade recente a uma “instigação por parte de emissoras de televisão via satélite”, e acrescentou que o objetivo por trás deste “complô contra a Síria” é “acabar com seus líderes, que resistem a Israel”. Disse, ainda, que o governo começaria a trabalhar em reformas, sem especificar tempo ou alcance.
As novas realidades econômicas e demográficas, bem como os avanços nas ferramentas de comunicação, deixam os regimes autoritários árabes sem outra opção a não ser adotar reformas para sobreviverem. No entanto, aparentemente, o regime sírio ainda é reticente em aceitar este simples fato. Envolverde/IPS