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Democracias árabes diante de cruciais desafios

Foto: Primaveera Árabe/pantokrato.org

Washington, Estados Unidos, 25/9/2012 – Os protestos contra o Ocidente por todo o mundo islâmico, que começaram após a divulgação de um vídeo antimuçulmano supostamente produzido nos Estados Unidos, constituem uma severa prova para os novos governos democráticos de Egito, Tunísia, Líbia e Iêmen, entre outros. É hora de as novas democracias árabes explicarem aos seus povos, pública e energicamente, que as ações individuais em países do Ocidente, sem importar o quanto sejam ofensivas, não refletem necessariamente a postura dos governos ocidentais.

As sociedades ocidentais são diversas e complexas, e, como as muçulmanas, não deveriam ser responsabilizadas pelos atos de um ou mais extremistas, ainda que sejam insultantes para a religião ou o livro sagrado. As democracias árabes estão produzindo novos e diversos líderes, ideologias e centros de poder, que os outrora ditadores reprimiram por décadas. Se a democracia quer prosperar na região, não deve dar as boas-vindas à ideologia salafista, de mentalidade fechada e exclusivista, que prega o ódio e a intolerância.

Os governos árabes devem agir de modo decisivo para deter a crescente maré de salafismo radical. Pelo menos quatro fatores guiam os atuais protestos maciços na região. Primeiro, o recém-descoberto sentido de democracia e empoderamento dá às pessoas a liberdade de sair às ruas cada vez que sentem a urgência de expressar seus pontos de vista sobre um assunto. Uma vez acostumado com a ideia da liberdade de reunião, a sociedade árabe se inclinará menos a deixar seu trabalho e a sair da rua independentemente da causa.

Segundo, nas últimas manifestações esteve subjacente um dominante sentimento antinorte-americano, que se arrasta desde o governo de George W. Bush em razão do que é visto como políticas anti-islâmicas. Outro fator são os salafistas radicais, que se opõem ao que chamam de democracia criada pelos seres humanos e a relações pacíficas com o Ocidente. Usam os protestos para prejudicar a nascente experiência democrática que acontece no Egito, na Tunísia e na Líbia, e agitam os sentimentos antiocidentais nas ruas. Os salafistas também tentam se apoderar da revolução contra Bashar al Assad na Síria.

Por fim, a rede Al Qaeda seus grupos subsidiários no Iêmen, Iraque, norte da África e em outras partes tentam usar os protestos de rua para mascarar seus complôs contra regimes árabes, funcionários e interesses do Ocidente na região. Enquanto as democracias lançam raízes, os governos devem educar seus cidadãos sobre a natureza do sistema, bem como das liberdades de expressão e associação, que são seu selo em qualquer parte do mundo.

Durante anos, meus analistas e eu alertamos altos funcionários que o mundo muçulmano é diverso e complexo, e que somente uma pequena minoria deles é de extremistas e terroristas. Determinou-se que vastas maiorias dos 1,6 bilhão de muçulmanos rechaçam a narrativa terrorista, que o hoje falecido Osama bin Laden e sua rede Al Qaeda promoveram em nome do Islã.

Consideramos que, pelo bem de nosso interesse nacional, nossos líderes não deveriam pintar todo o mundo muçulmano com a ampla brocha do terrorismo. Os presidentes Bush e Barack Obama, em boa parte, aceitaram a análise e agiram com base na mesma. Com frequência declararam que a guerra contra a Al Qaeda e o terrorismo mundial não era contra o Islã, e que o Ocidente e o mundo muçulmano compartilham muitos valores.

Seguindo a mesma lógica, as manifestações violentas e a destruição gratuita cometidas por grupos voláteis, muitos dos quais nem mesmo viram o ofensivo vídeo divulgado na rede YouTube, poderiam levar alguns no Ocidente a ver todo o mundo muçulmano como um lugar onde escasseia o discurso racional e abunda o frenesi das multidões. A secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, denunciou o vídeo anti-islâmico nos piores termos. Enfatizou que seu governo e seu povo nada têm a ver com ele e que rechaçam seu conteúdo.

Embora não haja disponível muita informação sobre a trágica morte do embaixador Christopher Stevens, no dia 12 deste mês na cidade líbia de Bengasi, a orquestração do ataque e as armas empregadas refletem o modo de operar da Al Qaeda. Grupos locais ou filiados a essa rede executam operações semelhantes na região. Stevens acreditava que norte-americanos e muçulmanos compartilham muitos valores, incluindo o amor à família e o compromisso com a justiça. Lamentavelmente, os radicais que participaram dessas manifestações – foram salafistas ou terroristas vinculados à Al Qaeda – se opõem ao diálogo e veem o Ocidente não muçulmano como “infiel”.

A maioria dos muçulmanos que integram a corrente dominante não compartilha deste ponto de vista e, na verdade, veem com bons olhos as relações econômicas, políticas e culturais com os países do Ocidente, inclusive com os Estados Unidos. Milhares de jovens muçulmanos estudam em universidades dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Europa ocidental.

Os líderes e defensores do salafismo radical que perdoaram, incentivaram e participaram de fatos de violência e destruição nas recentes manifestações, deveriam ser levados à justiça por seus governos, pelas mortes, pelos ferimentos, pela destruição de propriedades que causaram. Por culpa de sua ideologia tirânica e de suas ações, estes líderes e ativistas salafistas perderam o direito de participar da transição democrática.

Milhões de árabes saíram às ruas no ano passado para denunciar a repressão de seus regimes. Os ditadores derrubados usaram o medo e as torturas para negar aos seus povos os direitos humanos e civis mais básicos. Sequestraram, prenderam e mataram escritores, poetas, cineastas, comediantes e blogueiros partidários da democracia, apesar do caráter pacífico de suas reclamações.

Não se deve permitir que os salafistas radicais se apoderem dos recém-ganhos direitos democráticos. Os novos meios sociais (da internet), que ajudaram a divulgar a mensagem de esperança e otimismo durante os vertiginosos dias da Primavera Árabe, lamentavelmente têm outro lado. O vídeo Innocence of Muslims (A inocência dos Muçulmanos) é o símbolo mais recente dessa face. Envolverde/IPS

* Emile Nakhleh é ex-diretor do Programa de Análise Estratégica do Islã Político na Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos e autor de A Necessary Engagement: Reinventing America’s Relations with the Muslim World (Um Compromisso Necessário: Reinventando as Relações dos Estados Unidos com o Mundo Muçulmano).