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Classe média segundo o ângulo pelo qual se olha

Segundo a definição do governo, muitos moradores de favelas, como a do Complexo do Alemão, são de classe média. Foto: Fabíola Ortiz/IPS

 

Rio de Janeiro, Brasil, 10/10/2012 – A quantidade de pessoas que teriam saltado da classe baixa para a média na última década no Brasil é questionada por economistas, embora destaquem a ascensão social registrada. Os críticos desse indicador pedem que sejam considerados outros fatores além da renda familiar. A discussão sobre a classe média, que pode ser até “filosófica”, segundo disse à IPS o economista Adhemar Mineiro, começou a partir da divulgação de um informe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), da Presidência do Brasil.

O estudo garante que 35 milhões de pessoas subiram nos últimos dez anos para a classe média, que passou a representar 38% da população, em 2002, e 53% em 2012, neste país de 192 milhões de habitantes. Caso se mantenha a tendência à redução da pobreza, os estratos médios chegarão a aumentar até atingirem 57% dos brasileiros em 2022, acrescenta a SAE, encarregada de planejar as estratégias socioeconômicas e políticas do país no longo prazo.

O problema, marcado pelos analistas que questionam estes dados divulgados no final de setembro, é o parâmetro utilizado pelos técnicos do governo, que considera como sendo da classe média uma família cujos integrantes tenham renda individual média entre R$ 291 e R$ 1.019 por mês. “A faixa de renda utilizada para a definição da classe média no Brasil me parece muito ampla”, disse à IPS o professor João Sabóia, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Para ele, o critério inclui pessoas com rendas e hábitos de consumo muito diferentes, e dele se depreende que 53% da população é considerada nesta classe social. O salário mínimo no Brasil equivale a R$ 622, maior do que a renda individual mínima utilizada. Sabóia considera que a classe média deveria ser definida a partir de outros fatores, como consumo, e não renda.

O Brasil tem um estudo de orçamento familiar realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que a cada cinco a sete anos coleta dados de hábitos de consumo da população. Com esse parâmetro poderia ser definida a classe média, com base em um padrão de consumo, e obter a proporção a partir desse dado, o que constituiria “um grupo mais homogêneo”, afirmou o professor da UFRJ.

Sabóia não questiona a importância econômica e social do ocorrido nos últimos tempos no Brasil. “Não há dúvida de que houve forte ascensão social no Brasil, que nos últimos dez anos atravessa um processo de redução da pobreza e uma grande melhora na distribuição da renda. O fato é, em si mesmo, muito mais importante do que discutir se a classe média no país representa 30% ou 50% da população”, ressaltou.

Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp), afirmou à IPS que a discussão sobre a classe média inclui várias correntes de pensamento. Mencionou o marxismo, que estabelece esse padrão com base na estrutura positiva e suas relações, isto é, “quem detém e quem não detém os meios de produção”. No outro extremo, outras definições extraídas do “sonho americano” ou da economia de pós-guerra europeia, que incluem conceitos como inserção profissional, melhora da escolaridade e os hábitos culturais e de consumo diferenciados, acrescentou Fagnani.

Por isso, para o professor da Unicamp, o critério utilizado pelo governo é “arbitrário”, pois “dá a impressão de que o Brasil reduziu a pobreza e que esses pobres passaram para a classe média”. Sem deixar de esclarecer que “não há como negar que no Brasil houve progressos nos últimos anos”, o economista questionou se sair da pobreza significou, necessariamente, conseguir um bem-estar. “Há um certo triunfalismo do governo ao dizer que saíram da pobreza e chegaram à classe média. Mas, quem ganha um salário mínimo não é pobre? A pessoa que vive em um bairro sem saneamento ou utiliza a rede pública de saúde é classe média?”, questionou.

Fagnani opinou que é preciso incluir outros critérios. “A classe média pode ter casa em boas condições e conforto, cursos de música, de inglês, viagens internacionais, planos médicos privados”, deu com exemplo. Mas, só do ponto de vista da moradia, o Brasil “tem um déficit enorme”. Cerca de 80% da escassez prejudica as pessoas com renda de até três salários mínimos, comparou.

O economista Adhemar Mineiro, do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), pontuou que a nova ascensão social tem impactos importantes do ponto de vista da cidadania, independente dos parâmetros estabelecidos, com os quais também discorda e que atribui ao “neoliberalismo”. Por isto prefere falar da “incorporação de desempregados e de novos trabalhadores, mas, fundamentalmente, de uma formalização da economia”, que inclui os que tinham um emprego irregular.

Esta ascensão social inclui basicamente trabalhadores que entraram no mercado formal em setores como construção civil, comércio e trabalho doméstico, isto é, áreas onde os salários e níveis de educação são baixos e se verifica um escasso acesso a bens culturais. Trata-se de “uma massa de trabalhadores que agora reivindica direitos e serviços públicos, que se organiza, aposta na educação dos filhos e filhas e atua politicamente”, explicou Mineiro.

Por outro lado, esses novos trabalhadores formais “começam a impulsionar a economia por meio do consumo e dessa demanda por serviços públicos que, na área de infraestrutura, representa novos investimentos em obras públicas e, portanto, mais investimentos em geral”, acrescentou o economista. Mineiro considerou, ainda, que o combate à pobreza constitui uma novidade histórica para o Brasil e reivindicou as políticas implantadas para isso, como os sucessivos aumentos do salário mínimo, os programas de complementação da renda familiar, como o Bolsa Família, e a formalização da economia e, com ela, o acesso ao crédito.

O economista preferiu evitar termos de um debate que “hoje está velozmente ultrapassado pela propaganda política e por uma noção de matriz liberal da qual o principal elemento de cidadania é a possibilidade de acesso à renda, com a qual o indivíduo possa definir com sua racionalidade como gastar, e assim se converter em um cidadão com possibilidade de consumo”. Envolverde/IPS