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Comprimidos não curam males da ocupação israelense em Gaza

O Tramadol se tornou perigosamente popular em Gaza para combater o estresse da ocupação israelense. Foto: Emad Badwan/IPS

 

Gaza, Palestina, 24/10/2012 – Muitos moradores de Gaza recorrem ao Tramadol para combater o estresse da ocupação israelense. Mas sua prevalência neste território palestino tem mais a ver com sua ampla disponibilidade do que com sua efetividade para anestesiar a realidade. O sítio imposto por Israel no começo de 2006 impede uma oferta variada em matéria de analgésicos. Inclusive as pessoas com maior resistência e informadas recorrem ao Tramadol como forma de aliviar a dura realidade do trauma, da pobreza fabricada e do estresse permanente.

O medicamento sintético, frequentemente receitado para enfermidades dolorosas, não é em si mesmo prejudicial, mas há outra variedade no mercado, mais forte e potencialmente letal. “Semanalmente atendemos de três a quatro casos de overdose, na maioria homens jovens”, disse Abu Yusef, paramédico de 34 anos e dez de experiência. “Os pacientes apresentam sudorese, delírio, vômitos, dores abdominais e inclusive podem ter alucinações. É morfina antes de tudo, e tem efeitos secundários”, explicou.

Embora nunca tenha sido viciado, Yusef tomou Tramadol quando saiu da prisão israelense onde esteve por vários anos. “Tomava Tramadol por causa das dores abdominais depois de ser solto. Mas deixei de tomar e agora recorro a um analgésico”, contou. No entanto, a grande maioria dos consumidores não o toma com receita médica. “Tem quem acredite que o remédio o deixa mais forte, lhe dá poder. Inclusive alguns médicos o tomam de vez em quando porque têm muitas horas de trabalho. Os escavadores de túneis são mais inclinados ao consumo regular. Mas eles o fazem para manter a resistência, não para dormir”, destacou Yusef.

O médico Hossam Al Khatib, de 28 anos, é especialista em viciados, e por seu trabalho conhece os antecedentes e as razões que levam a um consumo abusivo deste remédio. “A maioria quer esquecer seus problemas, e o Tramadol serve por algum tempo”, explicou. “A taxa de desemprego entre jovens e adultos é muito alta em Gaza. Nos últimos seis anos, cada vez mais pessoas passaram a consumir Tramadol, inclusive universitários que passam um ano ou mais sem encontrar trabalho”, pontuou.

Houve aumento substancial no uso de medicamentos devido ao trauma causado pelo ataque israelense contra Gaza entre o final de 2008 e começo de 2009. Contudo, Khatib afirma que o bloqueio que sofre este território é a principal causa do abuso. “O bloqueio é a causa de todos os problemas: alto desemprego, desesperança, estresse, ansiedade e depressão. Inclusive alguns adolescentes de 15 anos ou mais o tomam porque suas vidas são muito difíceis”, detalhou.

Como é barato e se consegue nas ruas de Gaza, para os jovens é mais fácil comprar e se viciar em Tramadol do que em outras drogas duras mais caras e difíceis de se encontrar neste território. Havia drogas em Gaza muito antes do bloqueio de 2006. “Porém, as pessoas não recorriam ao Tramadol nem a outras drogas como mecanismo de fuga, não como agora. Realmente, é uma consequência do bloqueio”, disse Khatib. As causas do consumo são mais profundas do que a falta de trabalho e a frustração, segundo o médico.

“A situação em Gaza gera uma mudança na sociedade palestina, e causa mais problemas familiares. Por exemplo, um jovem desempregado, cujo irmão mais novo tem trabalho, sente vergonha de não poder ajudar a familiar ou não conseguir manter sua própria mulher e os filhos”, afirmou Khatib. Os homens jovens que não podem custear seu casamento ou manter a família têm grandes probabilidades de se tornarem viciados em Tramadol ou outras drogas como forma de aliviar a vergonha e sua desgraça, acrescentou. Alguns são apenas consumidores casuais. Segundo sua experiência, acrescentou que 20% são viciados.

Para Khatib e Yusef, a maioria das drogas chega do Egito pelos túneis subterrâneos, a salvação de Gaza porque também por eles entram alimentos, animais de criação, frutas e verduras, artigos de pesca, e basicamente tudo o que é proibido pelo bloqueio israelense. Entretanto, “com a enorme pobreza que há no Egito, muitas pessoas fabricam o Tramadol em suas casas. Algumas misturam morfina e veneno de rato”, alertou Yusef. “O veneno é um excitante, estimula o cérebro e produz serotonina, como o Tramadol. O veneno em si não é viciante, mas em altas doses ou com uso contínuo pode causar a morte”, acrescentou.

Como ocorre com a maioria das drogas, a ironia do Tramadol é que, além de não atacar a origem do problema, na verdade, o agrava, lamentou Khatib. “A síndrome de abstinência e os efeitos secundários normais são depressão, ansiedade, insônia, desesperança e remorso por ter consumido drogas. Os viciados crônicos podem apresentar perda de coordenação, problemas sexuais e, inclusive, esterilidade”, observou.

Considerando que a maioria das pessoas viciadas busca equivocadamente uma solução para seu mal-estar psicológico, Khatib enfatizou a importância do tratamento terapêutico uma vez que deixam de consumi-lo. “Fazemos com que se sintam importantes e com esperanças, e os incentivamos a se socializarem, a não ficarem isolados de seus amigos ou de suas comunidades”, explicou.

Sendo o desemprego um dos fatores cruciais do estresse, a clínica de Khatib ajuda as pessoas que se recuperam do vício a encontrar trabalho, “as estimula a terem paciência na busca por emprego, a não se entregarem nem desanimar”, afirmou. A origem dos problemas varia, mas como muitas das situações que sofre Gaza, a solução está mais do que clara, acrescentou. “Se abrirem as fronteiras, acabarem com o sítio, haverá novamente trabalho e as pessoas não se sentirão tão desesperadas e não vão precisar tomar remédios como o Tramadol”, ressaltou. Envolverde/IPS