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Fórum Social Mundial entre críticas, uma tragédia e a Primavera Árabe

Um dos debates do Fórum Social Temático, realizado em Porto Alegre no final de janeiro. Foto: Clarinha Glock/IPS

 

Porto Alegre, Brasil, 4/1/2013 – A tragédia da discoteca Kiss desviou a atenção dos participantes do Fórum Social Temático (FST), realizado entre 26 e 31 de janeiro em Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul, que ficou famosa por abrigar as primeiras edições do Fórum Social Mundial (FSM). Na madrugada do dia 27 de janeiro, o público local e mundial se comoveu pela morte de centenas de jovens asfixiados no incêndio da discoteca, na cidade de Santa Maria, a 292 quilômetros de Porto Alegre.

No dia 1º, havia confirmação de 236 mortes, enquanto dezenas de jovens permaneciam em estado grave. As causas apontadas para o incêndio foram negligência e uma série de erros e irregularidades cometidas pelos proprietários da Kiss e pela banda que se apresentava no momento da tragédia. Imediatamente, o comitê organizador do FST cancelou as atividades culturais previstas, e decidiu manter os encontros para debater o tema geral deste ano: Democracia, Cidades, Desenvolvimento Sustentável e Trabalho Decente.

O FSM é o maior âmbito de debate de uma miríade de grupos e organizações da sociedade civil organizada, cujo denominador comum é a crítica ao rumo da globalização capitalista. Dias antes do início do FST, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Marcha Mundial das Mulheres anunciaram que não participariam dos debates em protesto pelo que qualificaram de “institucionalização” do Fórum por parte da prefeitura de Porto Alegre, que aprovou uma lei prevendo a realização anual do FSM.

Outra crítica é pela participação de entidades de “direita”, como empresários e representantes de grupos religiosos. Por essas críticas, pelo cancelamento dos espetáculos ou pela comoção causada pelas mortes em Santa Maria, o certo é que não foi alcançada a expectativa de que o FST reunisse 40 mil pessoas. Segundo Cícero Pereira da Silva, delegado da União Geral dos Trabalhadores e um dos coordenadores do grupo que debateu sobre o mundo do trabalho, 15 mil pessoas se inscreveram, incluindo visitantes de países vizinhos, da Europa e dos Estados Unidos.

O documento final do FST – a Carta de Porto Alegre, divulgada no dia 31 de janeiro – se divide em dois temas. As propostas apresentadas serão entregues no mês que vem à Comissão Internacional do FSM, que se reunirá na Tunísia. “Sobre o mundo do trabalho, decidiu-se promover uma luta intransigente pelos direitos humanos e pela qualidade de vida nas grandes cidades”, disse Cícero à IPS. “Mantivemos uma forte discussão sobre trabalho decente, que sempre foi um dos temas gerais da Organização Internacional do Trabalho, e nos focamos muito na tragédia de Santa Maria. Culpamos o poder público por não fiscalizar”, acrescentou.

Em matéria de saúde, o Movimento Saúde + 10 (composto por diversas entidades de profissionais da medicina, universitários, sindicatos e grupos religiosos) propôs coletar 1,5 milhão de assinaturas para apoiar a apresentação de um projeto lei que obrigue a destinação de 10% do orçamento federal à atenção sanitária. A Carta de Porto Alegre também destaca a necessidade de uma nova ética, de educação e preservação de técnicas tradicionais de produção.

O grupo que debateu sobre o mundo da igualdade racial condenou a intolerância religiosa, a violência contra as mulheres e a ausência de programas municipais para ampliar a participação da população afrodescendente. José Antônio dos Santos da Silva, coordenador do Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-Racial do Rio Grande do Sul, somou-se ao luto geral pelos mortos na discoteca e recordou que são elevados os números de jovens negros assassinados diariamente neste país de quase 200 milhões de habitantes. Contudo, a imprensa não denuncia esses fatos, ressaltou.

“É preocupante a falta de oportunidades de trabalho para os jovens negros e sua cooptação pelo tráfico de drogas. Isto fortalece nossa briga por uma política de cotas na educação pública”, disse José Antônio à IPS. “Os índices de violência mostram que em cada dez jovens mortos sete são negros, e 90% deles vivem nas periferias” das cidades, pontuou. Simultaneamente ao FST, ativistas sociais se reuniram na cidade de São Paulo nos Diálogos Rumo ao Fórum Social Mundial, organizados pelo Grupo de Apoio e Reflexão sobre o Processo do FSM.

Por sua vez, Messaoud Romdhani, um dos organizadores do FSM na Tunísia, se mostrou otimista apesar das incertezas e tensões que vive seu país, berço dos movimentos populares e democratizadores que há dois anos sacudiram o Oriente Médio e o norte da África e que a imprensa batizou de Primavera Árabe. Messaoud, professor de inglês de 56 anos e ativista pelos direitos humanos, espera que o FSM intensifique o intercâmbio entre a população e os movimentos sociais de seu país com organizações internacionais de ampla experiência.

“Queremos mostrar a situação da Tunísia e esperamos ajuda para superar este momento de transição que é muito difícil, porque o governo até agora não mostrou interesse em implantar uma democracia e garantir os direitos humanos”, disse o ativista à IPS. Após o levante que derrubou o ditador Zine El Abidine Ben Ali, em janeiro de 2011, a Tunísia embarcou em uma série de reformas que incluíram a eleição de uma Assembleia Constituinte e a formação de um governo provisório, no qual o partido islâmico moderado Ennahda é maioria.

No entanto, Messaoud afirmou que “persiste a prática do antigo regime, com ameaças do partido religioso que domina o governo”, e que teme uma virada para o islamismo extremo. Neste aspecto, é mantida a luta pela igualdade de gênero e a liberdade de expressão. “O FSM nos ajudará a atrair a atenção para a Tunísia e fornecerá combustível e solidariedade para estas lutas”, destacou. Segundo ele, as autoridades de seu país não apresentam restrições à organização do FSM, “talvez porque desejem mostrar à mídia internacional que o governo atua corretamente”.

A Primavera Árabe, caracterizada por uma série de manifestações por mais liberdade, dignidade e igualdade, ativou um sonho, observou Messaoud. “Nos, que lutávamos por isso há tanto tempo, nos demos conta de que é mais fácil derrubar um ditador do que implantar uma democracia. A democracia exige mais tempo para superar anos de opressão, interesses petroleiros e a intolerância”, ressaltou. Envolverde/IPS