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A hospitalidade espanhola em xeque

Foto: Divulgação/Internet

Málaga, Espanha, 5/3/2013 – “Antes éramos muito úteis e agora somos uma pedra no sapato”, disse o equatoriano Roberto Suárez, ao expressar seu descontentamento pela punição, com multas e prisão, de condutas solidárias de espanhóis a estrangeiros ilegais, como pode acontecer se, finalmente, for aprovado um anteprojeto de reforma do Código Penal.

A mudança proposta para o Artigo 317 do Código Penal estabelece que “quem intencionalmente ajudar, com intenção de lucro, a permanecer na Espanha uma pessoa que não seja cidadã de um Estado-membro da União Europeia, violando a legislação sobre entrada ou permanência de estrangeiros, será castigado com multa ou prisão de seis meses a dois anos”.

O mesmo castigo se impõe para quem ajudar estrangeiros ilegais a “entrarem no território espanhol ou transitar através do mesmo”, deixando nas mãos do promotor do Estado a decisão de acusar, ou não, já que este “poderá se abster de acusar por este crime quando o objetivo perseguido for unicamente prestar ajuda humanitária”.

Cerca de 30 organizações nacionais e internacionais realizam a campanha A hospitalidade não é crime para condenar a perseguição penal da ajuda humanitária a imigrantes em situação irregular. Criticam especialmente que esta forma de criminalização seja uma opção do legislador segundo diz o anteprojeto de reforma do Código Penal, aprovado pelo Conselho de Ministros no dia 11 de outubro de 2012, mas que ainda não chegou ao Parlamento para ser examinado.

“Durante anos fomos uma peça de engrenagem no desenvolvimento da Espanha e hoje somos assediados e, mais ainda, perseguidos”, lamentou à IPS Suárez, presidente da Associação de Imigrantes Equatorianos na cidade de Málaga (Asimec). O fato de um taxista levar um imigrante ilegal de um lugar a outro da Espanha pode ser considerado facilitar o trânsito e, portanto, passível de condenação, disse à IPS a presidente da organização não governamental Andaluzia Acolhe, Mamen Castellano.

Além disso, quem ajudar os estrangeiros sem documentação a permanecerem no país com o legítimo interesse de lucro, mediante o aluguel de um quarto, por exemplo, também poderá ser incriminado. Os participantes da campanha antirreforma consideram “grave” que dependa da Promotoria a decisão de acusar ou não, e afirmam que o legislador poderia optar pela fórmula de incluir na lei a frase “Ficarão isentos de responsabilidade penal os que unicamente prestarem ajuda humanitária”.

Este artigo “é uma barbaridade, porque pressupõe que todos somos culpados”, até que o promotor decida o contrário, disse à IPS o jurista e coordenador em Valência da não governamental Comissão Espanhola de Ajuda ao Refugiado (Cear), Jaume Durà, que pede para “não se endemonizar a solidariedade”. “É uma falta de respeito com os imigrantes que de uma maneira ou outra estão em terras estrangeiras. Nosso único crime sempre foi e será trabalhar e velar pelo bem-estar de nossas famílias”, enfatizou Suárez.

A Andaluzia Acolhe apresenta moções nas prefeituras para que sejam os próprios funcionários a rejeitarem a “arbitrária” redação da lei, explicou Castellano. Algumas administrações e organizações da sociedade civil criam projetos de trabalho para a integração do coletivo imigrante que poderiam ser punidas, como ajudas para moradia.

Em sua origem, o Artigo 318 do Código Penal garante a proteção das pessoas afetadas por certas atividades derivadas dos fluxos migratórios, como tráfico de pessoas, mas, com sua modificação, atuar de forma humanitária pode se converter em causa de perseguição ou não perseguição, alerta a campanha em sua página na internet. Em dezembro de 2012, juízes, advogados, religiosos e famílias reunidos na plataforma Salvemos a Hospitalidade iniciaram uma campanha de coleta de assinaturas para mudar o artigo em Change.org, até o momento com mais de 54 mil adesões.

“É o cúmulo. Trata-se de transformar a população imigrante em bode expiatório”, disse Betty Roca, coordenadora da Área de Migrações e Codesenvolvimento de Psicólogos Sem Fronteiras, organização integrada à Campanha pelo Fechamento dos Centros de Internação de Emigrantes (CIE), que aderiu à iniciativa Salvemos a Hospitalidade. “Não podemos criminalizar algo que tem a ver com os direitos humanos”, destacou Roca à IPS. Os CIE são centros destinados a reter imigrantes ilegais, cujas condições são muito criticadas por organizações humanitárias na Espanha que os consideram verdadeiras prisões.

Tanto o governo espanhol do direitista Partido Popular quanto seu antecessor do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) “focam de forma errônea o tema da imigração, provocando medo, racismo e xenofobia”, pontuou Castellano. Desde a reforma da lei sanitária impulsionada pelo primeiro-ministro, Mariano Rajoy, há seis meses, os imigrantes ilegais só têm direito a atendimento médico de urgência, parto, pós-parto e pediatria.

Em 2009 a Salvemos a Hospitalidade criticou o Artigo 53 da reforma da Lei de Estrangeiros do então primeiro-ministro, o socialista José Luiz Rodríguez Zapatero (2004-2011), que prevê como infração grave e pune com multa “promover a permanência irregular na Espanha” de um estrangeiro sem documentos legais. Castellano considera “injusto” que na “época de bonança tudo bem os imigrantes virem e agora, que não há emprego nem na construção nem na agricultura, tirar seus direitos”. Há estrangeiros que tinham sua situação em dia quando tinham emprego, mas ao perdê-lo passaram à situação irregular como imigrante.

A Espanha enfrenta uma dura crise econômica e financeira, com 26% de sua população ativa sem trabalho, cortes em setores básicos como saúde e educação, e um descontentamento social que se reflete em frequentes manifestações nas ruas. Inclusive agora são muitos espanhóis que emigram, como ocorria em décadas passadas, em busca de oportunidades. “Os espanhóis também foram emigrantes e eram bem-vindos nos países de acolhida que os incorporavam para fortalecer o desenvolvimento desses lugares”, apontou Suárez, que chegou à Espanha há 13 anos.

Alguns advogados interpretam que somente será objeto de castigo aquela conduta em que houver a intenção de lucro ao aproveitar-se da situação irregular do imigrante, como é o caso de um aluguel abusivo. Mas, a sociedade civil pede a mudança do artigo porque considera que sua redação não está clara. Envolverde/IPS