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Tratado de venda de armas dribla vetos e consenso

Revólver com um nó no cano do lado de fora da ONU, em Nova York. A escultura do artista sueco Fredrik Reuterwärd se chama Não Violência. Foto: Tressia Boukhors/IPS

 

Nações Unidas, 3/4/2013 – A escultura de um revólver com um nó no cano, que fica diante do Centro de Visitantes da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, se tornou ainda mais simbólica ontem, quando uma maioria de países-membros apertaram mais o laço ao adotar o primeiro Tratado Internacional sobre Comércio de Armas. A Assembleia Geral da ONU aprovou o tratado por 154 votos, contra três e 23 abstenções. A adoção por maioria foi o passo seguinte às esgotantes negociações realizadas entre 18 e 28 de março na sede das Nações Unidas, que incluíram uma falida tentativa de consenso.

Com este tratado se pretende reduzir o uso de armas para violar os direitos humanos. O atual comércio não regulado conduziu a dramas como as crianças-soldado, a perpetuação da violência de gênero e os massacres de civis em muitas partes do mundo. Embora reconheça o direito dos Estados à sua defesa, o tratado impõe a regulamentação de exportações, importações, transporte e intermediação. Seu alcance são as armas convencionais – tanques de guerra, veículos de combate blindados, sistemas de artilharia de grande calibre, aviões e helicópteros de combate, navios de guerra, mísseis e foguetes –, bem como as armas pequenas e leves.

O tratado obriga seus Estados-parte, aqueles que o ratificarem, a informar suas transferências de armas e avaliar se esses embarques acabarão em mãos de violadores dos direitos humanos ou do direito internacional humanitário. Este instrumento internacional estará aberto para assinatura a partir de 3 de junho. Segundo a resolução aprovada, sua entrada em vigor exige que seja ratificado por 50 Estados e terá efeito apenas para aqueles que completarem esse processo, sem impor obrigações legais aos demais, explicou Nikola Jovanovic, porta-voz e assessor do presidente da Assembleia Geral, Vuk Jeremi?.

“As resoluções da Assembleia Geral não são legalmente vinculantes, mas existe uma obrigação política de continuar e cumprir”, afirmou Jovanovic à IPS. Quando a Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu colocar em sua agenda um tratado para regular o comércio internacional de armas em 2006, seus membros acordaram que a decisão final seria tomada por “consenso”. Isso implicava uma decisão aprovada pelos 193 Estados que fazem parte da ONU, talvez com “reservas” que alguns poderiam apresentar, se fossem mantidas dúvidas sobre o texto.

Entretanto, indo mais para trás, na década de 1970, quando foi adotada a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, o conceito de consenso trazia consigo que cada Estado estivesse investido de um virtual poder de veto, uma envenenada prerrogativa que exercem há décadas as cinco potências com assentos permanentes no Conselho de Segurança: China, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Rússia. Então, quando três países – Coreia do Norte, Irã e Síria – quebraram na semana passada a regra do consenso, impedindo a adoção do tratado, o veto voltou como um bumerangue contra os cinco grandes, indignados com os três dissidentes que evitaram que 190 Estados referendassem o texto final.

Porém, o ocorrido não difere muito das múltiplas ocasiões em que os Estados Unidos, fazendo uso de seu veto, impediram resoluções que contavam com maiorias esmagadoras no Conselho de Segurança. “A hipocrisia é evidente, se considerarmos as mais de 75 vezes que Washington emitiu o único voto negativo no Conselho, bloqueando o consenso com seu veto”, declarou à IPS o professor de política Stephen Zunes, chefe de estudos sobre Oriente Médio na Universidade de São Francisco.

“Como há uma grande quantidade de tratados para o controle de armas, os direitos humanos e outros temas internacionais adotados com sucesso pela ONU mesmo sem consenso, me deixa perplexo que este tenha sido adiado, especialmente porque os três países em questão são considerados Estados renegados por boa parte da comunidade internacional”, acrescentou Zunes.

Porém, há uma possibilidade inquietante que vale a pena investigar, ressaltou Zunes, que escreve sobre o Conselho de Segurança, suas condutas e seus votos. “Já que os Estados Unidos tentam debilitar o tratado e conseguiram por várias vezes adiar a votação, seria o caso de se perguntar se tiveram algum papel na insistência de manter o consenso, de modo a bloquear a adoção, lançando a culpa sobre os três renegados”, afirmou.

Diante do fracasso da Conferência Final para o Tratado sobre Comércio de Armas, realizado entre 18 de 28 de março, espera-se que a Assembleia Geral, de 193 membros, que decide por maioria, tome o caso em suas mãos e o adote esta semana. O projeto de resolução é patrocinado por mais de 64 países, entre eles Estados Unidos, França e Grã-Bretanha, e irá em frente por maioria simples.

Washington foi um dos defensores mais firmes do consenso neste processo e “justificou essa opinião como forma de proteger os interesses norte-americanos”, disse à IPS a doutora Natalie J. Goldring, alta integrante do programa de Estudos em Segurança da Universidade de Georgetown. Inclusive a declaração dada em 2009 pela então secretária de Estado Hillary Clinton, anunciando a mudança de posição em relação à administração de George W. Bush (2001-2009) a respeito do tratado, enfatizava a manutenção do consenso.

O problema é que, durante as negociações, o consenso foi equiparado à unanimidade, mesmo quando não eram automaticamente comparáveis, acrescentou Goldring, que representa o Acronym Institute, dedicado ao estudo de armamento convencional e comércio de armas junto à ONU. Considerar o consenso como se efetivamente se requeresse unanimidade equivale a dar poder de veto aos países com as visões mais extremas, ressaltou.

A delegação norte-americana insistiu no consenso durante todas as negociações, destacou Goldring. Mas, ironicamente, isso foi usado contra os interesses norte-americanos pelos chamados céticos (Coreia do Norte, Irã e Síria), que se opuseram ao tratado, apontou. Mesmo que um rígido consenso seja um resultado desejável, a ONU deve ter mecanismos para avançar quando isto resulta impossível. Devolver temas à Assembleia Geral é uma opção que deveria ser seguida de forma mais coerente do que até agora, acrescentou a especialista.

Ao concluir a conferência na semana passada, a maioria dos países – inclusive os Estados Unidos – foi muito dura contra os três Estados rebeldes. Em referência à “hipocrisia” das grandes potências, Zunes destacou que nem França nem Grã-Bretanha exercem o veto desde 1989, quando se uniram aos Estados Unidos para impedir duas resoluções: uma contrária à invasão do Panamá pelos norte-americanos e outra contra o bombardeio, também norte-americano, contra um avião líbio.

Em décadas anteriores, Paris e Londres referendaram vários vetos norte-americanos a sanções contra o regime segregacionista da África do Sul e a outras resoluções referentes a esse país, Namíbia e Rodésia (hoje Zâmbia e Zimbábue). Em 1982, os Estados Unidos somaram forças com a Grã-Bretanha para vetar uma resolução sobre as ilhas Malvinas, chamadas de Falkland pelos britânicos, que ainda hoje mantém esse enclave colonial no Atlântico Sul.

E, desde a crise do Canal de Suez, em 1956, os únicos vetos aplicados por Paris e Londres, sem Washington, foram vários referentes ao atual Zimbábue, entre 1963 e 1972, e um sobre uma disputa da França com Comoras sobre a ilha de Mayotte. Neste caso, “não creio na teoria da conspiração. A delegação norte-americana disse que não tentava impedir o tratado, e essa afirmação parece crível”, disse Goldring à IPS.

Washington sempre foi um dos redatores da resolução apresentada pelo Quênia para levar a questão à Assembleia Geral. “Não precisavam chegar tão longe”, apontou Goldring. Em sua opinião, o texto atual do tratado é um excelente ponto de partida. “A verdadeira prova será sua implantação. Se os fornecedores de armas cumprirem suas regras de boa fé, renunciarão à exportá-las para países com problemas importantes de direitos humanos”, afirmou. Inclusive, conseguir que estes temas preocupem mais na hora de tomar decisões, já é um grande passo adiante, ressaltou. Envolverde/IPS