Arquivo

Uma sentença saudável desde a Índia

Genebra, Suíça, 5/4/2013 – A decisão da Índia de não modificar sua lei de patentes, como pretendia o laboratório Novartis para proteger seu medicamento Glivec, é uma vitória de todo o mundo em desenvolvimento, que depende dos medicamentos genéricos que esse país produz a preços acessíveis, destacou o sanitarista Germán Velásquez. A conquista comemorada por este especialista colombiano, conselheiro especial do Centro do Sul, é a sentença divulgada no dia 1º pelo Supremo Tribunal da Índia, rejeitando o recurso apresentado em 2009 pela multinacional farmacêutica Novartis, de origem suíça.

Com sede em Genebra, o Centro do Sul é uma organização intergovernamental que envolve mais de 50 países em desenvolvimento e se dedica à análise dos problemas nessas nações. Velásquez, que trabalhou por mais de 20 anos na Organização Mundial da Saúde (OMS), expôs à IPS seu ponto de vista sobre esse processo tramitado nos tribunais de Nova Délhi e sobre suas consequências para os países em desenvolvimento.

IPS: Como interpreta a sentença do Supremo Tribunal da Índia?

GERMÁN VELÁSQUEZ: Há problemas com a informação que está sendo divulgada. Quase todo o mundo diz que a Índia rejeitou a patente do Glivec. Isso é verdade, mas não é isso o que diz a sentença.

IPS: Então?

GV: O X da questão é a ratificação dos critérios fixados pela lei indiana para aprovar a patente de um remédio. Isto é, se cumpre os requisitos de apresentar uma inovação, ou não.

IPS: Como explica a questão?

GV: Tudo começa com a adoção do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (ADPIC), um dos tratados estabelecidos ao mesmo tempo em que nascia, em 1995, a Organização Mundial do Comércio (OMC). A Índia foi, então, o único país em desenvolvimento que utilizou todo o período de transição para aplicar o ADPIC, até 2005, quando promulgou sua lei de patentes.

IPS: O que ocorreu com os pedidos de patentes apresentados durante essa década de transição?

GV: Foram se acumulando até somar cerca de dez mil, e apenas em 2005 o escritório de patentes começou a examiná-las. Entre elas figurava o Glivec. Mas os novos critérios normativos resultaram ser mais rígidos, como o que indica que a inovação não pode consistir em uma mudança menor em uma molécula, mas tem que apresentar algo substancial. Resumindo, em 2006 foi negada a patente de venda local do Glivec, um medicamento contra o câncer.

IPS: Como continua a história?

GV: A Novartis questiona essa resolução e abre uma causa judicial diante de um tribunal da cidade de Madrás (capital do Estado de Tamil Nadu que desde 1996 passou a se chamar Chennai). Mas o Supremo Tribunal dessa cidade, após três anos, também rejeita a petição. Nesse mesmo 2009 apela em uma instância superior e novamente perde.

IPS: Agora, qual outro recurso lhe resta?

GV: Aqui há um aspecto que não está sendo suficientemente divulgado. Em um gesto muito cínico, perverso e grave, a Novartis disse: “Se não me derem a patente irei ao Supremo Tribunal, mas agora pedindo que seja eliminado esse critério rígido estabelecido no Artigo 3 da lei de patentes. Se forem fixados padrões mais flexíveis, menores, então meu medicamento entrará”, argumentou.

IPS: O processo, então, tomou outro aspecto…

GV: Sim, pois com a intenção de introduzir seu medicamento à força, a firma transnacional pretendia modificar a lei de um país. E de um país como a Índia. Creio que nisso seus diretores pecaram por falta de visão ao tomarem essa decisão. Isto custou muito caro para eles em termos de imagem.

IPS: Como chega a essa conclusão?

GV: Nota-se que foi um mau passo ao se pôr a denunciar a lei de patentes da Índia com o risco de perder. A indústria transnacional, em geral, vinha de uma derrota na África do Sul, quando em 2001 foi obrigada a desistir de uma ação contra uma lei que autorizou patentear medicamentos importados a preços menores para poder enfrentar a epidemia de aids. Alguém poderia supor que a “Big Pharma”, como são chamadas as maiores companhias farmacêuticas, havia aprendido a lição. Inclusive sabendo que o Glivec estava patenteado em 40 países, entre eles Estados Unidos, China e Rússia.

IPS: Insinua um efeito dominó?

GV: Se a Novartis perde na Índia, como perdeu no dia 1º, qualquer dos governos dos 40 países pode se perguntar: “Por que não reviso essa patente e a anulo?”. É uma faculdade que figura nas legislações de todos eles.

IPS: Que status têm esses 40 países que reconhecem a patente do Glivec?

GV: Em sua maioria são Estados industrializados, grandes mercados. Mas entre eles há alguns com severas dificuldades econômicas na atualidade, como Grécia e Espanha, cujas autoridades podem se perguntar por que devem pagar US$ 2.500 mensais por pessoa por um tratamento contra câncer. Podem dizer: “melhor farei fabricando o genérico e invalidando esta patente”. Creio que os diretores da Novartis não tiveram isso em conta ao se lançarem nesta corrida judicial. Obviamente, após o primeiro impulso, seguiram até o final e hoje terão as repercussões.

IPS: Quais podem ser essas consequências?

GV: Deve ser uma lição para os demais países do Sul. Devem tratar de seguir o exemplo da Índia e introduzir em suas legislações cláusulas como as do Artigo 3d, que restringe e determina alguns critérios a respeito do que é uma inovação para ter direito a uma patente. Que não pode haver apenas uma pequena mudança, que às vezes é apenas cosmética, em uma molécula do remédio.

IPS: Qual a perspectiva de que esse critério se estenda?

GV: Na Índia, Argentina e nas Filipinas já existe essa proibição, enquanto outros a estão introduzindo por vias alternativas.

IPS: Outras consequências?

GV: A Índia poderá continuar fabricando genéricos de todos os novos medicamentos que não sejam verdadeiramente originais e continuará exportando-os com tranquilidade. Deve-se ter em conta que 95% dos retrovirais consumidos na África são indianos. Assim, a sentença do tribunal indiano é brutalmente importante, com uma repercussão muito concreta para esse medicamento e mais cerca de dez mil que estão na lista de espera no escritório de patentes em Nova Délhi.

IPS: Qual porcentagem desse número poderá obter uma patente?

GV: Em 2010, a Argentina aprovou duas mil novas patentes farmacêuticas e a China quatro mil. Mas, na realidade, as verdadeiras inovações são de apenas 40 ou 50 produtos por ano.

IPS: Por que essa tremenda diferença entre patentes acordadas e verdadeiros produtos inovadores?

GV: A indústria farmacêutica enfrenta dificuldades muito grandes para inovar. Então se aferra a uma lógica muito míope, muito imediata, mas de elevados lucros. Consiste em lançar inovações incrementadas, como se chama em inglês, ou seja, um produto pequeno com apenas uma mudança gradual, mas acompanhado de uma grande campanha comercial.

************************

“Medicamento que cura, mata o mercado”

Os farmacologistas franceses Philippe Even e Bernard Debré afirmam que a pesquisa no setor é cada vez mais complexa e não se consegue desenhar medicamentos que representem um avanço tecnológico forte. Os grandes laboratórios fizeram até o final da década de 1990 inovações espetaculares, que mudaram as condições de vida, começando pelos antibióticos.

Contudo, desde então começaram a ter dificuldades, mudaram de estratégia e se dedicaram a lançar medicamentos de modo rápido sem muitas diferenças entre eles, segundo Germán Velásquez. “Também optaram por produzir remédios que não curam, mas que apenas tratam a doença, como é o caso dos medicamentos contra o colesterol, que são para serem consumidos por toda a vida”, afirmou.

“A filosofia do negócio é que o medicamento que cura mata o mercado”, ressaltou Velásquez. “Imaginemos que a indústria invista milhões de dólares em um remédio ou dispositivo médico para curar a hipertensão arterial. Isso seria o fim do comércio sanitário mais poderoso da atualidade nos países industrializados”, afirmou. “É que 20% da população sadia desses países hoje toma anti-hipertensivos”. Envolverde/IPS