Os governos, as agências públicas deveriam ser exemplos de responsabilidade social e ambiental. Mas não são. Muitas fazem parte da rede de transgressão que sabota nossa legislação e nossas políticas ambientais.
Como pode o BNDES ser o gestor do Fundo Amazônia, destinado a proteger a floresta e promover o desenvolvimento sustentável da região, e financiar empresas e se associar a empreendimentos acusados pelo Ministério Público Federal de contribuir para o desmatamento e a prática de trabalho escravo?
O MPF do Pará está processando o Banco do Brasil e o Banco da Amazônia por terem financiado empreendimentos autuados por desmatamento e outras transgressões ambientais e por práticas similares às de trabalho escravo. O Banco do Brasil respondeu prontamente, fez levantamento e análise de seus empréstimos contestados e descobriu que falhas operacionais haviam permitido erros de decisão. Tomou a decisão de alterar os procedimentos na região, para evitar que esse tipo de falha ocorra novamente. Do Banco da Amazônia, nada se ouviu.
O Ministério Público Federal no Acre está processando 14 frigoríficos por terem comercializado em 2009 e 2010 mais de 2 milhões de toneladas de carne ilegal. Essa carne teria sido adquirida de fazendas autuadas por desmatamento ou práticas similares a trabalho escravo. Comentei na CBN que vários desses frigoríficos eram financiados com recursos públicos. Em sua coluna de domingo, 17 de abril, Míriam Leitão mostrou que um deles, o JBS-Friboi, recebeu mais de R$ 7 bilhões do BNDES, que é seu sócio.
O BNDES se considera uma instituição que adota práticas de sustentabilidade e responsabilidade social e ambiental. Mas essa auto-imagem entra em choque recorrente com suas operações concretas. Financia termelétricas a combustível fóssil, não adota critérios de responsabilidade social e ambiental em todas as suas operações. Era de se esperar que, pelo menos para empresas que atuam na Amazônia, o banco adotasse critérios mais rígidos. Afinal, como gestor do Fundo Amazônia, tem obrigações bastante concretas. No mínimo, com relação a empresas que operam ou podem vir a operar na Amazônia, no BNDEs deveria fazer uma completa due diligence, uma auditoria prévia, para ver se a empresa tem credenciais de responsabilidade social e ambiental que a credenciam a operar na Amazônia financiada com recursos do público, especialmente aqueles sob a guarda do gestor do Fundo Amazônia.
Essa contradição no comportamento do BNDES reflete uma contradição da política governamental como um todo no Brasil. Temos legislação ambiental bastante efetiva na letra, mas desobedecida urbi et orbi, inclusive pelos governos. Temos um compromisso internacional de redução de gases de efeito estufa, mas as políticas industrial, de energia e de transportes do Brasil dão prioridade a atividades de alto carbono, logo alta emissão. Temos metas de redução do desmatamento, mas agentes federais sistematicamente financiam empresas que contribuem para o desmatamento. Programas federais prioritários, todos no PAC, são, hoje, os maiores vetores de desmatamento na Amazônia: estradas e grandes hidrelétricas. A política energética dá mais espaço a termelétricas que a usinas eólicas e despreza a energia solar. Até agora não foi homologada no Brasil sequer a tecnologia que permite a auto-geração solar eólica e a integração ao sistema. Essa tecnologia permite grande economia de consumo doméstico de energia do sistema e, para os grandes consumidores, a redução substancial na conta de luz compensaria arcar com o investimento.
Essas contradições aparecem também na área social. O Ministério do Trabalho tem um programa de cooperação com a OIT, ONGs e empresas, para coibir o trabalho similar ao trabalho escravo no Brasil. Entretanto, toda hora, há flagrantes de empreendimentos financiados e subsidiados por outras agências do Governo Federal, submetendo seus trabalhadores a condições degradantes de trabalho forçado.
Da mesma maneira que as empresas têm que embutir a sustentabilidade na sua lógica de decisão, os governos precisam embutí-la na formulação de todas as políticas e nos critérios de alocação de verbas públicas. É claro que os governos não estão obrigados a fazer respeitar a lei e cuidar da aplicação dos princípios de responsabilidade social e ambiental apenas na Amazônia. Deveria ser padrão geral de comportamento.
*Publicado originalmente no site Ecopolítica.
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