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Direitos básicos prejudicados na luta contra o crime

A etnia guarani kaiowá exposta à violência dos pecuaristas do Mato Grosso do Sul. Foto: Mario Osava/IPS

 

Rio de Janeiro, Brasil, 24/5/2010 – O Brasil apresenta um grande déficit de justiça, leis e instituições que garantam os direitos humanos de seus habitantes, expostos em muitos lugares a situações de alto risco, diante do fogo cruzado da criminalidade e das forças de segurança, segundo estudo da Anistia Internacional apresentado no dia 22. “Nos últimos anos houve importantes avanços em matéria de direitos básicos neste país, mas em várias áreas persistem as vulnerabilidades”, afirmou Átila Roque, diretor executivo do capítulo brasileiro da Anistia, que tem sua sede central em Londres.

“A ameaça à vida da população em geral pela ação criminosa continua sendo grave e os órgãos estatais que devem garantir os direitos da sociedade frequentemente se convertem em agentes de violações desses direitos”, apontou Roque à IPS. O estudo O Estado dos Direitos Humanos no Mundo, que no ano passado analisou a situação existente a esse respeito em 159 países, dedica mais de quatro páginas ao Brasil, nas quais se destacam a alta incidência dos crimes violentos, bem como o uso excessivo da força e até a aplicação de torturas por parte das forças encarregadas de combater o crime.

As forças policiais do Rio de Janeiro são um caso extremo, pontuou Roque, pois há agentes que “usam o uniforme como instrumento para violar e, assim, somar-se ao delito”. O representante da Anistia entende que o Estado tem dificuldades para lutar contra esta nova forma de crime organizado. “Este é um fenômeno que ganhou visibilidade nos últimos tempos e que deixa claro, sobretudo, um processo de deterioração da segurança pública, que não foi capaz de conter a expansão do crime organizado nas próprias fileiras da polícia”, ressaltou Roque.

A criação no Rio de Janeiro das Unidades de Polícia Pacificadora é uma das fórmulas eficazes para reduzir a taxa de homicídios, mas essa estratégia de polícia comunitária não tem sido tão rápida nem tão estendida para incluir as forças de segurança. De acordo com Roque, “se não for dada atenção à profundidade do problema não se melhorará a situação da impunidade e dos direitos humanos”. O informe da Anistia também indica que o sistema penitenciário do Brasil deveria ter pelo menos 200 mil efetivos a mais para atender a grande quantidade de presos existentes no país, que em geral sofrem “condições cruéis, desumanas e degradantes”.

Para Roque, o crescente aumento da população carcerária do Brasil, com 198 milhões de habitantes, contribui para a ocorrência de atentados contra os direitos humanos nas penitenciárias, abarrotadas com mais de 500 mil detentos em todo o país, quantidade superada apenas por Estados Unidos, China e Rússia. Além disso, mais de 40% desses presos ainda não tem sentenças definitivas.

Uma delegação da Anistia, que em 2012 visitou as prisões do Amazonas para investigar a veracidade das denúncias de maus-tratos, encontrou os presos “amontoados em celas fétidas e inseguras”. Foram colhidos vários depoimentos sobre torturas, como a simulação de afogamento por meio de sacos plásticos, golpes e choques elétricos, uma prática pela qual são responsabilizados, na maioria dos casos, policiais militares, diz o informe.

A investigação da organização também aborda a questão indígena, se detendo na situação da etnia guarani kaiowá do Mato Grosso do Sul, que sofre intimidação, violência e ameaças de expulsão de suas terras ancestrais. “Os líderes camponeses e indígenas dessa região são vulneráveis à violência de latifundiários e o risco de morte continua alto”, advertiu Roque. Trata-se de uma “ação organizada de extermínio de um povo com a conivência do Estado e a paralisia da sociedade”, ressaltou.

O informe questiona a publicação, em julho de 2012, de um parecer da Procuradoria Geral da República que permite o desenvolvimento de projetos mineiros e hidrelétricos, além de construções militares, em terras indígenas sem que sejam feitas as consultas segundo o Convênio 169 da organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre povos originários e tribais, que o Brasil ratificou em 2002.

Flávio Machado, coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) disse à IPS que os povos indígenas sofrem “total desprezo” por parte das autoridades brasileiras e enfrentam uma das mais graves situações desde os tempos da ditadura (1964-1985). “Há uma ofensiva conjunta contra os povos indígenas, cujos membros são tratados como cidadãos de segunda classe”, afirmou Machado, que colaborou com a Anistia para a parte indígena do informe anual da organização.

Os 45 mil membros da etnia guarani kaiowá constituem a segunda maior população indígena do país. A maioria vive em pequenas áreas confinadas no sul do Mato Grosso do Sul, suportando níveis de violência e agressão superiores à média nacional. A taxa de homicídio nacional é de 27,4 para cada cem mil habitantes, segundo o Mapa da Violência 2012. Mas no povo guarani kaiowá essa média sobe para 140 para cem mil pessoas, explicou o representante do Cimi.

Nos últimos dez anos foram assassinados 12 líderes indígenas apenas no Estado do Mato Grosso do Sul, a maioria da etnia guarani kaiowá. “A violência é exercida por pecuaristas e seus capangas. Há uma milícia para matar indígenas e evitar que suas terras ancestrais sejam demarcadas pelas autoridades. Até agora só foi reconhecido oficialmente 10% do território que lhes corresponde por lei”, denunciou o Cimi, entidade vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Machado afirmou que o problema mais grave que estes indígenas enfrentam é o suicídio, pela angústia de se verem sem perspectivas de futuro em suas vidas. Segundo a Direção de Saúde Indígena Especial do Ministério da Saúde, foram registrados 611 suicídios entre 2000 e 2012. “Esta é a consequência do processo de confinamento em pequenas áreas sem possibilidades de desenvolvimento”, enfatizou. A presidente Dilma Rousseff não recebeu representantes das comunidades aborígenes desde que assumiu o cargo em janeiro de 2011, apesar de haver numerosos pedidos, afirmou o Cimi. Envolverde/IPS