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França e Portugal: o casamento gay contradiz as aparências

Jovens homossexuais portugueses na marcha por ocasião do aniversário da Revolução dos Cravos, no dia 25 de abril. Foto: Anette Dujisin/IPS

Lisboa, Portugal, 31/5/2013 – O casamento entre pessoas do mesmo sexo contraria a crença generalizada de uma França berço do conceito republicano moderno e promotor dos direitos civis igualitários desde a Revolução de 1789, enquanto o pacato Portugal se revela muito mais aberto e transigente. A violência da reação de vastos setores da sociedade francesa diante da aprovação pelo parlamento, dia 23 de abril, e da promulgação, no dia 18 deste mês, da lei que autoriza o casamento homossexual deixou muita gente perplexa, habituadas a considerar este país como uma espécie de porto seguro de tolerância.

Até altas horas da noite do dia 26, foram registrados atos de violência e enfrentamentos entre policiais e manifestantes, muitos deles membros de diversas organizações católicas tradicionalistas que veem nessas ocasiões um atentado contra a natureza das famílias. Porém, a temperatura baixou e no dia 29, na cidade de Montpellier, aconteceu sem incidentes o primeiro casamento francês entre dois homens, uma cerimônia que contou com cerca de 500 pessoas festejando, 140 jornalistas e cinco manifestantes opositores de extrema direita, facilmente neutralizados por uma centena de policiais.

Na primeira linha de oposição ao casamento gay estiveram presentes figuras de destaque da Igreja Católica, como o arcebispo de Paris, cardeal André Vingt-Trois, e Marc Aillet, bispo da diocese de Bayona, Lescar e Oloron.

Por outro lado, no também católico Portugal, ao ser votada a lei sobre casamento gay, em 2010, o Patriarca de Lisboa, cardeal José da Cruz Policarpo, manteve um cauteloso silêncio respeitando a condição de Estado laico estipulada na Constituição. E Portugal deu um passo a mais. Por proposta da esquerda, com apoio de vários deputados de direita, o parlamento nacional aprovou, no dia 17 deste mês, uma lei autorizando os casais do mesmo sexo a adotarem crianças em conjunto.

Consultado pela IPS sobre esta aparente contradição, Rui Tavares, deputado português do Partido Verde no Parlamento Europeu, explicou que “a França é um país conservador, mas a maioria dos estrangeiros não acredita nisso porque conhecem apenas momentos como a Revolução de 1789, a Libertação (resistência à ocupação alemã 1940-1945) e o movimento estudantil de maio de 1968”.

Tavares afirmou que “estes fatos históricos foram exceções à regra” e que, desde 1945, “a França só elegeu dois presidentes de esquerda, François Mitterrand (1981-1995) e o atual, François Hollande. “Os demais foram todos mandatários conservadores: Charles De Gaulle, Georges Pompidou, Valery Giscard d’Estaign, Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy e até chegou a colocar no segundo turno das eleições presidenciais de 2001 Jean-Marie Le Pen, líder da extrema direita”, detalhou.

“Que grande primeira república europeia, uma França que mantém, paradoxalmente, muitos aspectos aristocráticos e monárquicos, um país com estruturas muito mais hierárquicas e autoritárias do que Portugal e que conserva enormes bolsões de catolicismo reacionário e retrógrado, que se escondeu durante a Libertação, reapareceu com a guerra da Argélia e está muito organizado”, ressaltou Tavares, ironicamente.

Já em Portugal, “não há extrema direita nem salazaristas organizados”, em alusão a Antonio de Oliveira Salazar (1889-1970), fundador e líder do “Estado Novo”, a ditadura corporativista fundada em 1933 e derrubada em 1974 pela Revolução dos Cravos, levada adiante pelos capitães esquerdistas do exército. “Este país se liberalizou, urbanizou e modernizou muito nos últimos 30 anos, e a maioria da população se identifica com estas mudanças que melhoraram suas vidas, e agora é mais aberta e plural”, afirmou o deputado.

Apesar disso, “a homofobia é um fenômeno que em Portugal continua presente e se manifesta pela linguagem ou atitude, embora seja mais extenso do que intenso, e muitos optem por uma atitude de não ingerência na vida dos demais, inclusive nos aspectos que podem ser considerados objetáveis. Em geral, os portugueses não têm atitudes absolutistas sobre qualquer coisa”, pontuou Tavares.

Em Portugal, “os laços familiares são fortes e se converteram em um argumento a favor do casamento gay”, disse o parlamentar português, contando, a seguir, uma experiência pessoal: “minha mãe de 80 anos me telefonou para dizer que a partir de agora está a favor do casamento gay, depois que ouviu um homossexual dizer o quanto sua mãe gostaria que ele se casasse”. Na França, “as distâncias são maiores, mesmo entre parentes diretos, de maneira que a oposição a este tipo de união parece ser um assunto mais racional e justificado com um discurso de valores, e não pela experiência do afeto familiar”, concluiu.

Por sua vez, Fernando Fernández, escritor e jornalista aposentado da agência francesa AFP, disse que “o espetacular das manifestações nesse país, contra a lei que legaliza o casamento entre pessoas do mesmo sexo, é que pode parecer um contrassenso em uma sociedade que tem perante o mundo uma imagem de tolerância, aberta e liberal. É verdade que a sociedade francesa pode parecer liberal quando vista do ponto de vista de outras que têm em sua essência uma profunda arca da Igreja Católica, como a espanhola ou a polonesa”, observou, por telefone à IPS, de Paris.

“No entanto, ocorre que, além deste selo, a sociedade francesa está seguramente muito mais determinada pelo que considera seus valores e não aceita o fato de existirem homossexuais iguais em deveres e direitos” aos heterossexuais, concluiu o jornalista. Emilia, uma lésbica portuguesa de 29 anos, concordou em falar à IPS desde que não revelasse seu nome completo, “porque sou das poucas felizardas que têm trabalho, em um país onde há muitos chefes homofóbicos e o desemprego entre os jovens beira os 50%”.

“Claro que há diferenças substanciais entre Portugal e França, onde um casamento gay tem de ser realizado sob forte proteção policial, o que mostra o grau de estupidez e primitivismo a que chegaram alguns franceses”, afirmou Emilia. Porém, ressaltou que não se deve idealizar Portugal. “É certo que as leis sobre casamento homossexual e a adoção são das mais avançadas do mundo, mas também é verdade que não temos a vida fácil, especialmente quanto à igualdade de oportunidades, existindo uma rejeição por parte de pessoas com moral muito conservadora e que ocupam altos cargos em empresas e instituições”, ressaltou a jovem. Envolverde/IPS