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Cineastas e presidente da Comissão Europeia não se entendem sobre audiovisual

Lisboa, Portugal, 26/6/2013 – A vitória da França, ao conseguir que a União Europeia (UE) exclua o setor audiovisual das negociações para um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, desembocou em uma guerra surda entre o chefe do executivo do bloco, José Manuel Durão Barroso, e o presidente francês, François Hollande. Nos últimos dias, Hollande obteve apoios de todos os setores intelectuais dos 27 países da União Europeia, enquanto o português Barroso, acusado de proteger mais os interesses dos Estados Unidos do que os da UE, nem mesmo pode contar com apoio de seu próprio país.

A polêmica começou quando o presidente da Comissão Europeia (CE), braço executivo do bloco, qualificou de “reacionária” a exigência francesa de excluir o setor audiovisual e cultural do acordo com os Estados Unidos. “Não posso crer que o presidente da CE tenha feito essa declaração sobre a França nem que tenha essa opinião sobre os artistas que se manifestaram”, afirmou Hollande, referindo-se aos cineastas que assinaram uma declaração, divulgada pela internet em 22 de abril, que só agora ganhou especial dimensão política.

Entre os signatários estão cineastas como o grego-francês Costa-Gavras, o espanhol Pedro Almodóvar, os italianos Bernardo Bertolucci, os irmãos Vittorio e Paolo Taviani e Ettore Scola, o britânico Mike Leigh, e o austríaco Michael Haneke, entre outros, e que tem apoio dos norte-americanos Steven Spielberg, David Lynch e Harvey Weinstein. A insistência da França em manter a exceção cultural na liberalização comercial com os Estados Unidos “faz parte de uma agenda antiglobalização que considero completamente reacionária”, afirmou Barroso em uma entrevista concedida ao International Herald Tribune, no dia 17.

Na visão do presidente da Comissão Europeia, proteger a diversidade cultural não significa isolar a Europa. “Alguns se dizem de esquerda, mas, na verdade, são culturalmente profundamente reacionários e não compreendem os benefícios que a globalização acarreta, inclusive do ponto de vista cultural”, insistiu Barroso. O tom da polêmica subiu ao surgirem velhas desavenças, nas quais os críticos do agora pró-norte-americano Barroso recordam sua imersão na direita portuguesa, no começo da década de 1980, diretamente do Movimento Revolucionário do Partido do Proletariado/Partido Comunista Português Marxista Leninista (MRPP/PCP-ML).

No dia 24, o presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, José Jorge Letria, ironizou, em um artigo no jornal Público, de Lisboa, afirmando que “o presidente Hollande teve muita sorte, ao não ser considerado revisionista ou mesmo social-fascista, se Dr. Durão Barroso tivesse recuperado o léxico de combate de sua juventude maoísta”. Para o ex-dirigente do MRPP/PCP-ML, “progressista seria alinhar-se com os interesses comerciais hegemônicos dos Estados Unidos, que poderiam representar uma redução preocupante do mercado audiovisual para os realizadores europeus”, afirmou Letria. “Será que Pedro Almodóvar, Mike Leigh, David Lynch, Costa-Gavras ou Michael Haneke são reacionários”, questionou.

Hollande se manteve inflexível em impor a “exceção cultural”, com a exclusão “clara e explícita” da área audiovisual. Isso congelou o início das negociações, até que, no dia 14 deste mês, os governos do bloco assumiram como posição europeia a exclusão do setor, sob a condição de que ela possa ser discutida, caso necessário. Graças a isso, as negociações para o acordo transatlântico de investimentos e comércio, que no começo se estenderão por dois anos, começarão em julho em Washington.

Costa-Gavras disse, no mesmo dia 14, no Parlamento Europeu, que “o senhor Barroso é um homem perigoso para a cultura europeia”. O cineasta português Antonio Pedro Vasconcelos afirmou à IPS que o político maoísta que se converteu à direita “é um homem claramente a serviço dos interesses norte-americanos”. Vasconcelos teve um papel crucial na gênese do processo da exceção audiovisual em 1993. Na época presidiu um programa de ajuda aos “pequenos países” da UE e dirigiu um grupo de especialistas da Comissão Europeia, nas negociações com os Estados Unidos dentro do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (Gatt), que deu lugar à Organização Mundial do Comércio (OMC).

Naquele momento, o grupo conseguiu que o setor audiovisual “ficasse fora do Gatt, o que provocou a fúria dos norte-americanos, encabeçados pelo presidente da poderosa MPAA (Motion Pictures Association of America), Jack Valenti”, explicou Vasconcelos à IPS. “Recordei a Valenti que a discriminação positiva era um meio legítimo que em certos momentos da história as minorias tinham que defender”, destacou. Citou o exemplo dos afro-americanos, “que lutavam há muito por sua adequada integração na indústria, se queixando do aumento de sua cota diante e por trás das câmeras, como ele bem sabia, e, nesse momento, nós, os cineastas europeus, éramos os negros da Europa”. Dessa forma, “o audiovisual ficou fora dos acordos do Gatt”, contou Vasconcelos.

Em sua negociação com Valenti, percebeu a importância que tinha para os Estados Unidos “a aprovação sem reservas de um acordo que mataria a indústria europeia”, pontuou Vasconcelos. Isso prepararia o caminho “para a competição desleal com os países que praticam formas de trabalho escravo, níveis insustentáveis de contaminação, falta de respeito pelos direitos humanos e, portanto, com vantagens econômicas, a preços insuportáveis para a competição”, garantiu. Se a MPAA tivesse ganho a batalha há 20 anos, “nesse dia a Europa social e culta que conhecíamos teria terminado”, mas agora, duas décadas depois, Barroso retoma o tema e de repente “se oferece a renegociar os acordos do Gatt”, concluiu Vasconcelos.

A polêmica ultrapassou a fronteira audiovisual e os políticos, em especial os franceses de todos os setores, abriram fogo cerrado contra Barroso. O ministro da Indústria da França, Arnaud Montebourg, deplorou esta semana que “se exerça uma pressão considerável sobre os governos eleitos democraticamente, o que torna inaceitável ter um presidente da Comissão Europeia que afirma que todos os que são contrários à globalização são reacionários”. Montebourg lamentou a passividade da União Europeia, “que não responde às aspirações populares dos europeus e que dá força aos partidos nacionalistas e antieuropeus”. Barroso é “o combustível da Frente Nacional”, a organização francesa de extrema direita, concluiu o ministro socialista.

Barroso também foi criticado pela direita da UE à qual pertence, congregada no Partido Popular Europeu. A eurodeputada Rachida Dati, ex-ministra da Justiça do ex-presidente francês Nicolas Sarkozy (2007-2012), exigiu que Barroso “saia rapidamente”, por “ineficácia e por inclinar-se diante dos Estados Unidos”. Nos quase dez anos de Barroso à frente da Comissão Europeia, “sua falta de coragem e sua ineficiência prejudicaram decididamente e muito os europeus”, afirmou Dati. Envolverde/IPS