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“Angela Merkel é quem decide nosso destino”

João Lopes Marques: “Angela Merkel gosta de pensar que algum dia todos os europeus deverão falar alemão. Foto: Mario Queiroz/IPS
João Lopes Marques: “Angela Merkel gosta de pensar que algum dia todos os europeus deverão falar alemão. Foto: Mario Queiroz/IPS

Lisboa, Portugal, 26/7/2013 – “A quem devo telefonar se quiser falar com a Europa?”. Esta famosa pergunta do ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger tem atualmente uma resposta óbvia: a alemã Angela Merkel, que corrige primeiros-ministros, neutraliza chefes de Estado e transfere o poder regional de Bruxelas para Berlim. Analítica e ambiciosa, Merkel se converteu, em 2005, na primeira mulher a ocupar a chancelaria (chefia de governo) de seu país. Quase todos, com o líder conservador Helmut Kohl na cabeça, subestimaram na época esta filha de um pastor protestante, doutora em física e química, criada na hoje desaparecida República Democrática Alemã (RDA) e com passado militante nas Juventudes Comunistas.

O escritor e jornalista português João Lopes Marques expõe desta forma, nas 270 páginas de seu último livro, O plano Merkel, o que define como a verdadeira história da mulher mais poderosa do mundo, a que “decide nosso destino”. A esta obra, lançada no dia 22 em Lisboa, antecedem O Homem que Queria ser Lindbergh, Terra Java, Iberiana e Choque Cultural. Formado em relações internacionais, com mestrado em estudos europeus, Marques recordou que a crise financeira de 2008 “acabou por empurrar Merkel para o cotidiano mais íntimo de todos nós”, e, de repente, “palavras como diktat, über alles, IV Reich e outros fantasmas teutônicos começam a abrir os noticiários europeus”.

IPS: Merkel tem dado motivo para as mais incríveis teorias de conspiração. Como elas surgem?

JOÃO LOPES MARQUES: Merkel é uma personagem totalmente atípica, que faz a transição entre dois mundos, o socialismo e o capitalismo, e que teve uma meteórica ascensão política no Ocidente. Absolutamente improvável. Surge no momento certo com o perfil adequado. O chanceler Helmut Kohl (1982-1998) necessitava na época de uma jovem protestante do leste (RDA) para fazer a propaganda da consolidação da reunificação alemã. E o que acontece é tão surpreendente que existem pessoas afirmando que é a filha de Adolph Hitler, um produto da CIA (Agência Central de Inteligência, dos Estados Unidos) ou mesmo uma extraterrestre. Naturalmente, não creio em nada disto. Porém, existe um evidente padrão na sua ação política: há nela uma enorme americofilia, por vezes dissimulada. O Atlantik-Brücke, um grupo de pressão berlinense ao qual pertence seu círculo mais próximo, participa do Bilderberg, uma comunidade de interesses das elites transatlânticas.

IPS: O que mais o surpreendeu em seu caráter?

JLM: O mesmo que surpreende a todos os demais autores que se focam nela: a falta de ideologia, visão e coragem, sua navegação sem bússola de valores. Seus nortes são apenas o dinheiro, e sua próxima reeleição no governo e como líder da CDU (União Democrata Cristã) e dos alemães. Daí nasceu o apelido “Chanceler de última hora”: protela qualquer compromisso até o último minuto e faz concessões que sempre são muito tímidas. A gestão da crise na zona do euro demonstra isso.

IPS: Como define a atual estratégia de afirmação do poder alemão? A Europa está mesmo em guerra, como afirmam alguns analistas?

JLM: Começando pela segunda parte da sua pergunta, sim. A Europa está verdadeiramente em guerra, econômica antes de tudo, mas também entre o norte e o sul da região. Não será como a Guerra dos Trinta Anos entre protestantes e católicos, pois, mais do que a religião, tem a ver com as culturas e os estilos de vida. A sesta, por exemplo, passou a ser moralmente incorreta. Em nome de salvar o euro, a Alemanha se sente no direito de germanizar a Europa. Merkel gosta de pensar que algum dia todos os europeus deverão falar seu idioma, pelo menos como segunda língua. Porém, o mais importante é a grande aposta da afirmação alemã em três pilares. Primeiro, ganhar a batalha das exportações, sobretudo com os países do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), que representam 50% de seu produto interno bruto. Segundo, aproveitar a fraqueza de seus vizinhos na crise pós-2008 e usar a oportunidade para reescrever uma nova ordem europeia. Por fim, se desfazer dos tabus mais inconvenientes do pós-guerra, como ser um Estado militarmente eunuco e a venda de armas ao exterior, já que esse país é o terceiro maior vendedor de armas do mundo, atrás de Estados Unidos e Rússia.

IPS: Após oito anos no poder, Merkel se prepara para o terceiro mandato. Já existe algum político príncipe, herdeiro deste poder continental?

JLM: Pelo que se sabe por seus biógrafos de muitos anos, percebe-se que Merkel gosta de exercer o poder. E gosta muito. Não tem filhos, nem família que dependam dela. Esta é sua profissão de vida. Seus índices de popularidade atuais também ajudam. O valor nominal é maior do que o de seu partido, que ela tem nas mãos. É quase certo que vencerá as eleições de 22 de setembro. Portanto, um sucessor também é um enigma. Fala-se de Thomas de Maizière, seu ministro da Defesa e que a lançou na alta política em 1990, e de Karl-Theodor zu Guttemberg, que precisou deixar o gabinete ministerial em 2011, após ser confirmado que plagiara sua tese de doutorado. Também é mencionado David McAllister, ex-ministro-presidente da Baixa Saxônia, filho de escoceses. Angela o vê como um futuro campeão do livre mercado, um pragmático com os pés no chão como ela.

IPS: Quais traços da República Democrática Alemã ainda hoje se sobressaem em Merkel?

JLM: A gestão do silêncio tácito. Só responde a algo – e nunca preto no branco – quando já não tem a alternativa de manter silêncio. Basta ver o caso do escândalo do programa Prism de espionagem dos Estados Unidos. Merkel sempre sabe muito mais do que diz. O mesmo sobre o que vai compartilhando sobre a primeira metade de sua vida (na RDA). Por outro lado, sua falta de sensibilidade em relação aos valores. Os fundamentos ideológicos do projeto europeu, que foi traçado na década de 1950, precisamente para evitar a guerra com a Alemanha. E mais, a indiferença diante da história. Com ela entramos em uma nova era da física quântica que é, afinal, sua especialidade profissional. Como no “princípio da incerteza”, de Werner Heisenberg (físico alemão), segundo o qual um átomo desaparece aqui e não sabemos onde reaparecerá. Com Merkel inaugurou-se algo novo: a política quântica. Jamais conheceremos com exatidão suas ideias. Envolverde/IPS